Revista Exame

Voilà! Eis a receita da criatividade da Pixar

Um passeio pela Pixar, empresa que inventou a animação digital, mostra a dimensão do poder das idéias e do talento no século 21

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Da Redação

Publicado em 21 de junho de 2012 às 16h05.

Logo na entrada da sede da Pixar, estúdio de animação digital mais poderoso de Hollywood, o visitante recebe um crachá com a seguinte frase: "A stranger from the outside!" (Um estranho lá de fora!). E um desavisado esperando uma empresa como outra qualquer se sente, de fato, um forasteiro. Para começar, todo o complexo, localizado na cidade de Emeryville, na Califórnia, parece um cenário dos próprios filmes que a Pixar produz.

Em vez de ocupar escritórios tradicionais, com salas e divisórias de vidro, muitos funcionários trabalham em cabanas de madeira, que lembram casinhas de boneca, só que maiores e freneticamente decoradas com pequenas esculturas, cartazes de filmes e brinquedos. A maioria das pessoas usa roupas engraçadas, muito coloridas, interrompe suas atividades para disputar partidas de pingue-pongue e passa horas em aulas de ioga ou artes gráficas.

Entre um "compromisso" e outro, deslocam-se em patinetes motorizados por vielas de asfalto circundadas por uma grama impecavelmente cortada. Em meio a esse mundo de fantasia, com ares de universidade americana, floresce hoje uma das culturas mais admiradas do mundo dos negócios.

"A Pixar é a prova de que a força das idéias, apoiada numa cultura de estímulo à criatividade, pode transformar o destino de uma organização", diz o americano Peter Kreisky, consultor de mídia e entretenimento, dono da Kreisky Media Consultancy.

Há 100 anos, as empresas não precisavam de dezenas de pessoas criativas. Contar com um só supertalento, que tivesse imaginação e espírito empreendedor, era suficiente para determinar o destino de um negócio. A Ford virou uma potência graças ao gênio inventivo de seu fundador, Henry Ford.

A General Electric seguiu caminho semelhante com base nas invenções de Thomas Edison. Esse é um cenário cada vez mais raro e difícil de reproduzir no século 21. Num mundo complexo como o atual, as empresas já não podem depender de uma única pessoa. Elas precisam de toda uma rede de funcionários, nos mais diversos escalões, com capacidade real de contribuir para o sucesso da companhia.


A Pixar é a síntese de um novo ambiente de trabalho, movido a inovação, colaboração e competição na medida certa, empreendedorismo e tecnologia. Eis aí a receita do sucesso. Nos últimos dez anos, o estúdio faturou mais de 7 bilhões de dólares, entre bilheteria, licenciamento de produtos e vendas de DVD.

Mais que isso, seus oito filmes são lembrados por crianças e adultos do mundo todo pela precisão técnica, que faz com que uma corrida de automóveis em animação digital pareça real, e pela beleza de suas histórias. Pergunte a uma criança quem é Buzz Lightyear, Nemo ou Relâmpago McQueen -- todos criados na fábrica de idéias da Pixar -- e ela provavelmente saberá mais sobre esses personagens do que sobre Pato Donald, Mickey ou Pateta.

O segredo por trás dessa performance, porém, é muito mais complexo do que deixar funcionários com tempo livre para jogos e brincadeiras. "O que fazemos aqui é investir em gente e pesquisa. Ah! E trabalhamos loucamente também", disse a EXAME John Lasseter, vice-presidente executivo da Pixar, diretor de filmes como Toy Story e Carros e responsável pela área de animação da empresa.

O episódio da demissão e suas circunstâncias foram cruciais para a maneira como Lasseter estruturaria a dinâmica de trabalho na Pixar. Marcado por essa experiência, ele procurou criar um estúdio em que as necessidades do departamento de arte viessem à frente das decisões comerciais.

Na prática, isso significa que os prazos para a realização de um filme, por exemplo, são mais elásticos do que nos outros estúdios. A média de lançamentos da Pixar é de um filme a cada 18 meses, enquanto seus concorrentes lançam um por ano. A forma de produção também é menos hierarquizada do que em estruturas mais tradicionais.

Baseada no axioma "todos aqui dentro são artistas", a Pixar desenvolveu uma cultura colaborativa, na qual os funcionários palpitam com liberdade e são publicamente avaliados por seus superiores. O dia na Pixar começa sempre com a revisão do trabalho do dia anterior. Nessas sessões de catarse coletiva, cada passo trilhado é intensamente criticado pelos diretores, na frente de toda a equipe.


Os próprios diretores dos filmes também se submetem a uma espécie de "conselho" composto de seus pares. "Às vezes é doloroso", disse a EXAME Brad Bird, diretor de Ratatouille e uma das estrelas da Pixar. "Mas funciona." Nem sempre sem algum contratempo. Por causa dessa política, o estúdio teve um problema de última hora com Ratatouille.

Bird foi obrigado a assumir o projeto às pressas porque o trabalho de seu antecessor, Jan Pinkava, não vinha agradando ao "conselho" -- Pinkava não está mais na empresa.John Alan Lasseter, de 50 anos, é o grande arquiteto da filosofia pró-criatividade da Pixar. Sua trajetória é daquelas que poderiam se transformar em um filme -- e ajuda a explicar sua obsessão pela palavra "arte".

Quando criança, Lasseter vivia cercado por pincéis, tintas e massas, objetos de trabalho de sua mãe, que ensinava artes numa escola primária. Na adolescência, decidido a tornar-se animador, escreveu uma carta para os estúdios Disney perguntando como poderia trabalhar lá. A resposta dizia apenas que ele precisava de uma "sólida formação em artes".

Mais tarde, Lasseter matriculou-se no curso de cinema e animação do California Institute of the Arts, de onde saiu para trabalhar na Disney. O que parecia ser a realização de um sonho de criança, o conto de fadas com final feliz, transformou-se numa experiência terrível. O estúdio era dirigido por pessoas mais interessadas em números do que em "arte".

Três anos e muitas trombadas com a chefia depois, o jovem animador foi demitido porque queria produzir um desenho em computação gráfica, considerado caro e sem futuro por seus superiores. Abalado, Lasseter foi trabalhar na divisão de computação gráfica da Industrial Light & Magic, do diretor George Lucas.

O tempo passou, essa unidade foi comprada por Steve Jobs (ele mesmo, o genial criador do iPod), ganhou o nome de Pixar (conjunção fonética das palavras "pixel" e "arte") e hoje pertence à Disney, que desembolsou em janeiro do ano passado 7,4 bilhões de dólares pela companhia. Ironia do destino, 24 anos depois de sair pela porta dos fundos, Lasseter agora é também responsável pela área de animação digital da empresa que o tinha dispensado.


NA GENESE DA CULTURA PIXAR, OUTRA GRANDE preocupação foi estabelecer condições para que a equipe se sentisse responsável pelo resultado dos filmes e da empresa. A solução foi criar uma política de remuneração diferente praticada pelos demais estúdios. O salário fixo dos funcionários da Pixar é cerca de 10% menor que o da indústria como um todo.

O que faz com que eles ganhem mais que seus pares, cerca de 300 000 dólares por ano no caso de um técnico em animação, é o desempenho de cada um aliado à performance do desenho. Todos os integrantes do time de técnicos ou de animadores têm metas individuais estipuladas pelos diretores. Se cumprirem o que estava acertado e o filme se sair bem nas bilheterias, ganham opções de ações e bônus atrelados a essas conquistas.

Um diretor chega a receber até 3 milhões de dólares por ano só com as bonificações. A conseqüência dessa política de distribuição de lucros, em que cerca de 60% do salário vem do variável, é que todos ficam comprometidos com o trabalho. Na Pixar, é comum a jornada se encerrar de madrugada e o fim de semana tornar-se tão animado quanto uma segunda-feira.

"Eles podem ter aula de ioga ou sair para levar as crianças à escola. Isso não importa. O que nós queremos é que eles se sintam donos do filme e desta empresa", diz Lasseter. "É isso que provoca uma intensa busca pela qualidade."

Os 1 000 funcionários que trabalham na Pixar levam essa busca ao extremo -- e a empresa não poupa recursos para que isso aconteça. Para fazer Ratatouille, alguns integrantes da equipe passaram até quatro meses seguidos em Paris com o objetivo de recriar o universo dos restaurantes franceses.

Eles freqüentaram dezenas de cafés e bistrôs, fizeram cursos de culinária, estudaram todos os movimentos dentro de uma cozinha (do ritmo das colheres  nas panelas à limpeza do chão) e tiraram milhares de fotos. O resultado disso foi um grau de fidelidade incomum, elogiado até por chefs consagrados.

O filme custou 150 milhões de dólares, mas já arrecadou mais de 550 milhões apenas nos cinemas. Em paralelo ao investimento, faz-se também um seletivo processo de escolha dos funcionários que serão admitidos nesse clube. Hoje, são quase 50 000 candidatos por ano para cerca de 100 vagas.


Para peneirar os talentos nessa multidão, presta-se menos atenção nos currículos dos candidatos e mais naquilo que eles já produziram em sua trajetória profissional. "Fazemos tudo o que as outras empresas fazem. Vamos às melhores escolas e temos um programa de estágio. Mas quer entrar na Pixar? Mande um filme para a gente", diz Randy Nelson, executivo sênior do estúdio e reitor da Universidade Pixar (aquela das aulas de ioga e artes gráficas).

TODA A OBRA DE LASSETER NÃO SERIA POSSIVEL sem a ajuda dos dois outros sustentáculos da empresa: Steve Jobs e Edwin Catmull, hoje presidente dos estúdios Disney. Jobs foi um entusiasta das possibilidades da Pixar desde o primeiro momento.

Defenestrado da Apple em meados da década de 80, ele procurava um novo negócio para investir sua energia e os milhões de dólares que havia acumulado na empresa de computadores. Acabou encontrando a Pixar por acaso. Pressionado pela ex-mulher para acertar um acordo de divórcio, George Lucas queria vender a unidade de computação gráfica da Industrial Light & Magic.

Selaram a negociação em 1986, por 10 milhões de dólares. Até vender a empresa, Jobs retirava apenas 1 dólar por ano da Pixar e deu liberdade quase total para que Lasseter e Catmull estruturassem o estúdio.

Catmull, desenhista frustrado e físico de formação, foi o criador do software RenderMan, que mudou a história da animação no planeta e deu origem à computação gráfica do jeito como a conhecemos hoje. Com a visão estratégica de Jobs (que investiu dez anos na empresa mesmo sem ver nenhum resultado concreto), a invenção de Catmull e o gênio criativo de Lasseter, a Pixar decolou em 1995, com o primeiro longa-metragem digital da história, o aclamado Toy Story.

O filme arrecadou mais de 360 milhões de dólares e iniciou a ininterrupta seqüência de sucessos que se mantém até hoje.  Em Hollywood, repetir a receita da Pixar tornou-se uma angústia -- e uma necessidade. Tanto que a Disney, segundo maior conglomerado de mídia e entretenimento do mundo, investiu uma fortuna para adquirir o estúdio. A história em comum das duas empresas é antiga.


Desde Toy Story, a Disney é parceira da Pixar nos custos de produção e na distribuição das obras (veja quadro na pág. 98). De acordo com um estudo do banco de investimento Merrill Lynch, desde 1999 metade dos lucros da unidade de animação da Disney vinha da parceria com a Pixar.

Partir para uma aquisição era o passo natural, mas o negócio não acontecia por causa de um choque de egos entre o então presidente da Disney, Michael Eisner, e Steve Jobs. Quando Robert Iger assumiu a presidência da Disney, em 2005, desfez os mal-entendidos, cortejou Jobs, que agora é o maior acionista individual da empresa, e fechou o acordo.

Com a aquisição, a "Casa do Rato" pretende recuperar a dianteira desse mercado, uma indústria que movimenta cerca de 50 bilhões de dólares por ano, e restaurar a mágica da Disney. Para isso, os principais executivos da Pixar assumiram o comando de várias unidades da Disney e têm a missão declarada de exportar sua valiosa cultura, em que o departamento comercial segue o de arte (e não o contrário), para a empresa-mãe.

Ainda é cedo para saber se a Disney fez um bom negócio ao comprar a Pixar. O certo é que não havia muitas opções à disposição de Bob Iger. A concorrência no setor de animação tem sido cada vez mais feroz e as empresas sem experiência na criação digital, incluída aí a própria Disney, perdem terreno rapidamente.

Além da Pixar, outros dois grupos se destacam nesse novo cenário: a DreamWorks Animation, que fez a trilogia Shrek e o recém-lançado Bee Movie, e a parceria de Blue Sky Studios com Fox Animation, responsável por desenhos como A Era do Gelo. Tecnicamente, a Pixar ainda tem alguma vantagem sobre as concorrentes.

Seus softwares são capazes de um efeito que faz com que qualquer objeto pareça de verdade. Mas essa tecnologia é praticamente imperceptível aos olhos dos espectadores comuns. O que faz a diferença entre essas empresas e a Pixar não passa pelos programas de computador.

A principal distinção está na capacidade que a empresa adquiriu de lançar, sucesso após sucesso, filmes que arrebatam multidões e geram bilhões de dólares em faturamento -- uma condição perseguida por qualquer companhia, de qualquer setor.

Todas as atenções da indústria cinematográfica se voltam agora para o próximo filme da Pixar, Wall-E. Será a história de um robô apaixonado, que deve estrear em julho do ano que vem. "Pela própria natureza da inovação, o lógico é falhar algum dia. Mas, impulsionados pela criatividade de 1 000 pessoas, vamos fazer de tudo para que esse dia não chegue nunca", diz Lasseter. As empresas que pretendem dominar este século têm muito, muito mesmo, o que aprender com a Pixar.

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