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“Pensamento crítico é a principal habilidade para o futuro", diz Martha Gabriel

Ícone nas áreas de negócios e inovação, Martha Gabriel fala da importância de se preparar hoje para navegar em um futuro revolucionado pela tecnologia

Martha Gabriel: o pensamento crítico será a principal habilidade para o futuro (Arquivo Pessoal/Divulgação)

Martha Gabriel: o pensamento crítico será a principal habilidade para o futuro (Arquivo Pessoal/Divulgação)

Publicado em 29 de abril de 2024 às 06h00.

Última atualização em 2 de maio de 2024 às 16h51.

“O futuro não espera nem perdoa a falta de preparo”, costuma dizer Martha Gabriel, uma das principais pensadoras digitais do Brasil. Em seu novo livro, Liderando o Futuro: Visão, Estratégia e Habilidades, a frase aparece mais de uma vez, como um reforço ao leitor de que, em uma era de IA e outras tecnologias avançando velozmente, indivíduos e empresas precisam se transformar no mesmo ritmo para saber usá-las conforme evoluem. Neste bate-papo com EXAME CEO, a especialista em inovação aborda a complexidade dessas mudanças, para onde as máquinas inteligentes podem nos levar e, principalmente, como uma habilidade humana em especial — o pensamento crítico — será a bússola para navegar nesse oceano de novas possibilidades.

Como se manter relevante no futuro supertecnológico é o tema do seu novo livro. Que futuro é esse que nos espera?

Não é possível prever o futuro; no entanto, podemos, sim, visualizar possibilidades de futuro e escolher os melhores caminhos para criá-lo. Algumas características têm alta probabilidade de estar presentes em quaisquer cenários que se estabeleçam e podem nos ajudar a nortear nossa vida: o futuro será cada vez mais rápido, complexo e tecnológico. Por isso, precisamos desenvolver habilidades para conseguir acompanhar a velocidade da mudança, a complexidade e a tecnologia.

Você abre o livro dizendo que existem basicamente três tipos de indivíduos: os ignorantes, os desesperados e os preparados. Nos negócios, quem são essas três personas em tempos de IA?

Os ignorantes não fazem ideia do que está acontecendo; os desesperados percebem o que acontece, mas não sabem como enfrentar; enquanto os preparados aproveitam as oportunidades. Na realidade, esses grupos trocam de lugar de acordo com o contexto em que se encontram, sendo que uma pessoa ignorante ou desesperada em uma situação pode estar preparada em outra, e vice-versa. Considerando as tecnologias e a digitalização, incluindo a IA, no contexto de negócios (que é diferente de um contexto geral, de grande público), acredito que ninguém é totalmente ignorante nem está totalmente preparado, e a grande maioria seja de desesperados.

Mais do que acesso às tecnologias, preparo para o futuro é o principal gargalo hoje nas empresas?

Sim. Atualmente, vemos um aumento de preo­cupação e investimentos no uso de inteligência artificial e tecnologias digitais, não apenas nas empresas mas no mercado em geral. No entanto, não vemos o mesmo grau de preocupação e investimentos em melhorias do uso da inteligência humana. Isso não faz sentido, pois, se considerarmos que a tecnologia nivela, oferecendo o mesmo potencial de uso para todos, o que faz a verdadeira diferença é a inteligência humana que é colocada na sua utilização. Humanos e tecnologias formam um sistema inteligente desde as nossas origens, que vem aumentando seu grau de inteligência conforme as partes evoluem.

Como essa engrenagem funciona?

Quando a tecnologia avança, trazendo um acréscimo de inteligência que fica disponível a todos, a única forma de adicionar mais inteligência é por meio da contribuição humana. Além disso, cada vez que a tecnologia avança, o tipo de contribuição humana necessária para o aumento da inteligência se torna diferente. Quando a roda começa a nos transportar mais rapidamente do que as nossas pernas conseguiam, por exemplo, a habilidade humana que passa a ter importância no sistema para torná-lo mais inteligente não é mais andar, e sim dirigir. Portanto, o preparo humano sempre foi o principal diferencial.

Enquanto é preciso se preparar para o futuro, as mudanças são tão rápidas que causam certa desorientação sobre onde e por que se aprofundar. Como filtrar o que é prioridade?

Duas habilidades principais nos auxiliam, tanto nos negócios quanto na carreira: o letramento em futuro e o pensamento crítico. O primeiro nos prepara para antever possibilidades, oportunidades e ameaças, que consequentemente direcionam as nossas decisões no presente. Até o final do século passado, fomos treinados para decidir com base no passado, já que o ritmo de mudança era lento. A partir do início do século 21, passamos a usar os buscadores e aprendemos a pesquisar. Agora, com o ritmo acelerado de mudança, precisamos antecipar, fazer perguntas, enxergar cenários que balizem nossa direção. Ao mesmo tempo, para validar informações, escolher tecnologias, entender o que está acontecendo, precisamos desenvolver o pensamento crítico. É ele que nos ajuda a realizar questionamentos adequados para tomar decisões. Alinhando as duas coisas, nos equipamos melhor para navegar o contexto que emerge.

Falando nisso, muito além de conhecimento técnico, você coloca soft skills como as grandes habilidades para o futuro. Por que essa competência é crucial?

Conforme a tecnologia avança, ela tem realizado cada vez melhor as competências relacionadas com hard skills. Por outro lado, aquilo que ela ainda não consegue fazer adquire valor, que são as soft skills, ou skills humanas. Entre elas, o pensamento crítico, na minha opinião, é a principal habilidade para o futuro, porque não apenas direciona mas atua sinergicamente com todas as outras habilidades (criatividade, colaboração, adaptação, resiliência etc.). O pensamento crítico nos permite enxergar o presente, alinhá-lo com o futuro, validar o mundo, filtrar informações relevantes, questionar, combater vieses... Com a ascensão da inteligência artificial, essa habilidade torna-se ainda mais essencial em meio a inúmeras questões emergentes que requerem novos entendimentos, formas de pensar e agir.

Edição de genes CRISPR em plantas de laboratório da Universidade de Yildiz, na Turquia: combinada com IA, técnica pode reconfigurar o DNA de seres vivos (Arife Karakum/Anadolu/Getty Images)

Por que a IA causa tanta apreensão? por causa da velocidade, do volume das mudanças, ou de onde ela está interferindo no processo cognitivo humano?

As três coisas juntas. Qualquer tecnologia transforma em algum grau o modo como fazemos as coisas e, consequentemente, muda o mundo. Qualquer mudança representa uma ameaça, pois traz incertezas e riscos, por isso recorrentemente o lançamento de novas tecnologias causa apreensão. Some-se a isso que, no cenário atual, vivemos uma aceleração em que não apenas a IA mas todas as tecnologias têm evoluído em ritmo vertiginoso. Como resultado, temos mudanças mais frequentes, o que causa um aumento no volume de mudanças no tempo. Esses dois fatores — novas tecnologias e aceleração do ritmo e volume de mudanças — já seriam suficientes para nos sobrecarregar e estressar. No entanto, adicionalmente entra em cena uma tecnologia que passa a automatizar atividades cognitivas que eram consideradas de domínio exclusivo humano. Embora as demais revoluções tecnológicas anteriores tenham demandado requalificação de habilidades, elas impactam mais os sistemas de produção mecânicos. Agora, com as IAs, além da necessidade de requalificação ser muito mais rápida, elas impactam diretamente o sistema de produção cognitivo da humanidade.

O ser humano não estava programado para lidar com tantos novos paradigmas?

Se considerarmos os últimos 100.000 anos da humanidade, demoramos 99,7% do tempo para desencadear a primeira Revolução Industrial. Depois disso, em menos de 0,05% do tempo, ou seja, nas cinco últimas décadas, a mudança passou a acelerar, sendo que de forma vertiginosa apenas nos últimos 0,02%. Portanto, evoluímos durante quase 99,99% desse tempo em um contexto em que o futuro tendia a ser repetição do passado e, consequentemente, para se preparar para o futuro bastava aprender a resolver o passado e repeti-lo. Até recentemente, os ciclos de mudança no mundo eram tão lentos que ultrapassavam a duração média da vida de um indivíduo. Fomos programados, portanto, para isso, e não para enfrentar inúmeras mudanças ao longo de toda a nossa vida. A desorientação que sentimos no cenário atual é decorrente disso.

Seja como for, a presença de inteligências artificiais na vida cotidiana e nos negócios é uma certeza, ou seja, adaptar-se não é uma escolha. Em que estágio dessa relação estamos hoje?

A IA não vai parar; portanto, fará parte cada vez mais da nossa vida. O questionamento que devemos levantar é o que vamos fazer com isso? Como podemos evoluir com as tecnologias inteligentes? Que riscos e oportunidades emergem? Como regular e equilibrar avanço e ética? E assim por diante. No entanto, como humanidade, estamos todos ainda no estágio inicial da relação com as IAs, tentando entender a música e qual é nosso papel nessa dança.

Que grandes oportunidades ainda são pouco percebidas?

A tecnologia está tornando possível nos transformarmos em super-humanos conforme nos misturamos com ela. Qualquer pessoa que já tenha usado algum chat de IA generativa teve a oportunidade de experimentar uma gotinha desse poder. Entretanto, a IA é apenas uma das tecnologias disponíveis. Outras, como a CRISPR, por exemplo, se combinadas com IA, podem literalmente reconfigurar nosso DNA e dos demais seres vivos do planeta. Isso nos permite não apenas curar todo tipo de doença como também configurar novas funcionalidades em nosso código genético. Por sua vez, a IA associada com blockchain, realidades aumentada e virtual, tende a criar realidades sintéticas, originando multiversos que podem nos proporcionar experiências que vão muito além das capacidades do corpo humano, como passear por Vênus, nas profundezas do mar ou no interior de uma célula. As possibilidades são infinitas. Os riscos, também.

O que vivenciamos hoje com a IA é só a pontinha do iceberg?

Experimentamos até agora apenas um vislumbre do potencial que as IAs oferecem e dos impactos que podem causar. Considerando que elas tendem sempre a melhorar performance e evoluir rapidamente, temos de nos preparar não para o que elas são capazes de fazer hoje, mas para o que poderão fazer amanhã.

Em que áreas ainda vamos ver, de forma rotineira, a IA colaborando para melhores resultados?

Acredito que não exista área do conhecimento ou atuação humana que não será impactada pela IA. Gradativamente, as IAs tendem a passar de automatizar atividades cognitivas humanas para solucionar problemas complexos que humanos não conseguem resolver. Se somarmos o potencial da IA com as demais tecnologias reestruturantes do planeta — IoT, big data, nanotecnologia, robótica, impressão 3D, realidades aumentada e virtual, computação quântica —, estamos pavimentando a estrada para a Sociedade 5.0, supersmart. Isso significa uma explosão de inteligência no planeta direcionada para a melhoria da vida humana em todas as suas dimensões.

Não dá para falar de IA, especialmente a generativa, sem abordar o desafio quanto à moral e à ética. Como essas questões estão progredindo?

Moral e ética são o maior desafio no desenvolvimento tecnológico, pois sem isso corremos o risco de escalar problemas existentes em vez de solucioná-los conforme as máquinas evoluem. Nesse sentido, existem inúmeras iniciativas acontecendo simultaneamente no mundo, como preocupações com regulação, autorregulação, red teaming etc. Projetos de regulamentação legal também têm se desenvolvido em diversos países e regiões, inclusive no Brasil. No entanto, o ritmo de evolução tecnológica e sua alta complexidade dificultam esses processos. Como a tecnologia não para, é crucial que essas ações continuem a evoluir para balizar o desenvolvimento e o uso tecnológico, mitigando seus riscos.

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