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O brechó é o novo fast fashion

A indústria da moda vive uma transformação. A velocidade do digital convive com um visual vintage, e a roupa usada conquista os guarda-roupas

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Desfile da Gucci em novembro de 2021: uma ode à era de ouro do cinema com a coleção Love Parade (Divulgação/Divulgação)

Desfile da Gucci em novembro de 2021: uma ode à era de ouro do cinema com a coleção Love Parade (Divulgação/Divulgação)

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Marina Filippe

Publicado em 14 de abril de 2022 às, 05h11.

Quando decidiu abandonar a carreira de advogada tributarista, em 2015, para investir no empreendedorismo, Luanna­ Toniolo achou no brechó online o modelo de negócios ­ideal. “Na época, eu estudava na Universidade Harvard e percebia a força desse mercado nos Estados Unidos, com um enorme potencial para ser replicado no Brasil”, diz. Ela não esperava, no entanto, faturar 1 milhão de reais já nos primeiros dez meses de operação, muito menos multiplicar a receita por dez nos dois anos seguintes. Tamanho crescimento chamou a atenção de grandes marcas, e o brechó digital de Toniolo, batizado de Troc, acabou comprado pela Arezzo&Co. “A companhia entendeu que o mercado de segunda mão é uma realidade no país, unindo moda, oportunidade e sustentabilidade”, afirma a empreendedora. 

Esse movimento da Arezzo&Co — que fechou 2021 com 2,92 bilhões de reais em receita — acompanha a mais nova tendência do glamouroso mundo da moda. Impulsionado por mudanças culturais e uma maior conscientização sobre os problemas do consumo desenfreado, o segmento de compra e venda de roupas usadas vive um momento singular. Segundo números da ­ThredUp, varejista eletrônica do setor de vestuário, o mercado global de segunda mão deve sair de 36 bilhões de dólares, no ano passado, para 77 bilhões de dólares em 2025. O mais impressionante é que, para 2030, a expectativa é ver os brechós e outros negócios baseados na comercialização de itens usados ultrapassarem, em faturamento, o setor de fast fashion, até pouco tempo considerado o presente e o futuro do mercado de vestuário. 

A Troc, brechó online criado por Luanna Toniolo: 1 milhão de reais de receita nos primeiros dez meses e aquisição pela Arezzo (Nicolas Caligaro/Divulgação)

A onda, agora, é desacelerar a produção e o consumo, mas sem interromper a lucratividade. Há uma dua­lidade acontecendo no mercado de moda. Ao mesmo tempo que existe uma aposta forte em modelos de negócios baseados no universo digital e no metaverso, principalmente das marcas de luxo, nas coleções o visual vintage ganha força. Em novembro do ano passado, a Gucci fez uma ode à era de ouro do cinema americano com a coleção Love Parade. Ternos de cetim, peças brilhantes, vestidos bufantes e looks de melindrosas foram apresentados na passarela da Hollywood Boulevard. A estética vintage também apareceu entre os convidados, com Gwyneth Paltrow vestindo uma recriação do terno de veludo vermelho criado por Tom Ford na década de 1990.

O estilo que remete às décadas passadas coincide com o lançamento, no final de 2021, da plataforma Vault. Alessandro Michele, diretor criativo da marca italiana, chamou a iniciativa de “máquina do tempo”. No site, o velho e o novo se misturam com uma curadoria de peças raras e vintage, coleções cápsulas e NFTs. Entre os itens é possível encontrar uma bolsa de couro dos anos 1960 por 4.000 dólares, ou um conjunto dos anos 1980, com saia e top de seda e recente adição de plumas, por 3.500 dólares. 

Ana McLaren e Tiê Lima, do Enjoei: 60% dos clientes venderam peças usadas pela primeira vez (Leandro Fonseca/Exame)

“Para mim, ir às compras não é simplesmente adquirir coisas. É estabelecer uma conexão com elas, entrar em um relacionamento. Foi justamente esse vínculo que cresceu hoje”, disse Michele, no lançamento da plataforma. “Sempre tive a ideia de criar um lugar em constante evolução, onde conversas ‘impossíveis’ entre objetos de diferentes origens, criadores e épocas pudessem acontecer em um diálogo entre o passado e o presente, capaz de despertar a inspiração futura.” A estética imaginada pelo diretor criativo se manifesta não apenas nas coleções da Gucci mas em um novo negócio digital, um brechó de luxo.

Tudo se recicla 

A empresa de pesquisas de mercado Euromonitor, especializada em consumo, aponta a compra de roupas usadas como uma das dez maiores tendências para este ano. Há um toque de ativismo social nessa tendência, em torno de pautas que ganharam força nos últimos anos, como a aceitação do próprio corpo e a equidade de gênero. Segundo a Euromonitor, as mudanças culturais empurraram as roupas usadas para o mainstream. Giovanna Nader, autora do livro Com Que Roupa? Guia Prático de Moda Sustentável, enxerga nesse movimento um ato de resistência. “É um meio de entender o próprio estilo e não seguir as tendências ditadas pelas marcas”, afirma. Adepta do consumo consciente, Nader tem um guarda-roupa composto majoritariamente de peças garimpadas — até seu vestido de casamento passou por outras mãos antes de seu “sim”. 

Gabrielle Pilotto, da Ventana: fuga do óbvio com peças feitas via upcycling (João Pedro Varela/Divulgação)

O número estimado de itens esquecidos em cabides e gavetas no mundo é de, aproximadamente, 9 bilhões de peças, segundo o relatório da ThredUP. “A produção de roupas mais do que dobrou entre 2008 e 2015, mas elas são usadas, em média, menos de dez vezes antes de serem jogadas fora”, afirma Luisa Santiago, líder da Fundação Ellen MacArthur, que promove a economia circular na América Latina. “Celebramos o crescimento do mercado de revenda, especialmente se ele for acompanhado de outras iniciativas de economia circular, como projetar peças para serem mais duráveis.”

Com o aumento da demanda, os brechós ganharam nova cara. O que antes era estereotipado como um ambiente com peças velhas e cheiro de mofo, hoje é tendência em lojas físicas e online. Mais do que fazer a curadoria de peças, marcas e estilistas também repaginam as roupas e os retalhos. Batizado de upcycling, esse processo pode dar novas características e finalidades de uso às roupas usadas. Um cobertor se transforma em blazer, uma cortina vira vestido, e gravatas são vestidas como um corset no ateliê de Gabrielle Pilotto, fundadora e diretora criativa da Ventana, grife especializada em upcycling. O intuito da estilista é “desacostumar o olhar do óbvio” com as roupas produzidas com material de segunda mão, que não necessariamente eram vestíveis antes de passarem pelas suas mãos. Criada há dez anos, a marca não era valorizada no início, segundo a fundadora. “As pessoas queriam consumir apenas se os preços fossem baixos, e não entendiam os valores das peças”, afirma. “A mentalidade do consumidor mudou”, diz Nader.

A escritora de moda Giovanna Nader: ela vê no garimpo de roupas usadas um ato de resistência (Divulgação/Divulgação)

Para a estilista Ana Luisa Fernandes, criadora da marca Aluf, de São Paulo, que recentemente fez uma colaboração com a Ventana, somente a sustentabilidade justifica a abertura de uma grife hoje. Retalhos sustentáveis, viscose certificada e madeira de reaproveitamento são algumas das matérias-primas escolhidas por ela para suas criações. Diferentemente do varejo tradicional, a marca não trabalha com liquidações. “Não adianta falar quanto valem os processos e a estrutura e de repente, depois de três meses do lançamento, baixar os preços e falar que não vale mais isso”, diz. Sua produção é enxuta, com peças atemporais e coleções que dialogam entre si. As peças que esgotam rápido são repostas, mas com cautela na quantidade para não haver excesso. 

(Arte/Exame)

Digital e físico 

A facilidade do comércio eletrônico é o maior incentivo a esse mercado. No site de classificados Enjoei, as roupas representaram 80% da receita de 106 milhões de reais obtida em 2021 — uma expansão de 32% quando comparada ao ano anterior. “Há muito mercado para capturar, diminuir o custo por aquisição de usuário e por transação das peças”, afirma Tiê Lima, cofundador e presidente do Enjoei. A empresa realizou um IPO no final de 2020, levantando 1,13 bilhão de reais. O grande diferencial da plataforma é a possibilidade de qualquer pessoa criar uma “lojinha” para seus produtos. A expectativa é chegar ao lucro em 2024. Atualmente, 1 milhão de pessoas vendem no Enjoei, sendo que 300.000 entraram no último ano. 

(Arte/Exame)

Para Lima, o Enjoei ajuda a consolidar o mercado de segunda mão no país desde a sua fundação, há 13 anos. “Em 2020, rodamos uma pesquisa com nossos clientes e 60% deles estavam vendendo peças usadas pela primeira vez. A mesma pesquisa aponta que o comprador frequente de roupas usadas geralmente tem metade do guarda-roupa composto de peças de segunda mão. “Por muitos anos promovemos a revenda na internet sozinhos, agora a ampliação do mercado é benéfica”, diz Ana McLaren, cofundadora do Enjoei. 

Mas há quem faça o caminho inverso. Nativa digital, a Troc inaugurou em março um ponto físico na Oscar Freire, rua de São Paulo famosa por reunir grifes de luxo. A novidade está dentro da loja da Alme, também do grupo Arezzo&Co, onde já funcionava um ponto de coleta de roupas usadas. Com iniciativas como essa, no ano passado a Troc saiu de 26 para 130 funcionários e cresceu 400% em capacidade de processamento de peças.

Campanha da Aluf: retalhos e madeiras se transformam em roupas (Divulgação/Divulgação)

De megaloja a brechó

As grandes varejistas de moda percebem a tendência. A ­Renner entrou no segmento com a compra da startup Repassa, um marketplace de roupas usadas, em julho do ano passado. O plano é crescer aos poucos, para não mudar a cara do negócio. “O setor de usados hoje é de 7 bilhões de reais e deve crescer mais do que o fast fashion nos próximos anos”, afirma Guilherme Reichmann, diretor de estratégia e novos negócios da Renner. Para Tadeu Almeida, fundador e presidente do Repassa, estar com uma grande empresa facilita a operação. “Temos de fazer, peça por peça, a logística, a produção de fotos e a divulgação. Mas com a Renner podemos diluir custos”, afirma. 

Para a fabricante de roupas Malwee, há um desafio em compreender a real mudança de cultura do brasileiro e em formar novas parcerias. “Estamos conversando com brechós online e físicos para entender como podemos ser parceiros. Outro caminho possível é termos a nossa própria revenda, como algumas marcas fazem em outros países. O que é indiscutível é o mercado de segunda mão como algo bastante relevante para nós”, diz Guilherme Moreno, gerente de marketing do Grupo Malwee. “O destino da roupa que produzimos é problema nosso, sim”, afirma Taise ­Beduschi, gerente de responsabilidade social do Grupo Malwee. 

A holandesa C&A, uma das maiores varejistas de vestuário do mundo, por meio do Movimento ReCiclo, iniciado em 2017, recebe peças usadas de qualquer marca, deixadas pelos consumidores em urnas disponíveis em 70% de suas 319 lojas. Até o momento, os pontos de coleta receberam mais de 137.000 peças, das quais 70% foram reutilizadas; e 30%, recicladas. A pandemia refletiu em queda nas doações, também pela diminuição de movimento nas lojas. Neste ano, porém, a partir de uma campanha, foi possível coletar peças para produzir uma coleção com 15.000 itens em jeans, que será lançada em agosto. 

(Arte/Exame)

Em relação ao mercado de revendas, a C&A vê desafios. “Desde 2020 firmamos parcerias com startups para coletar e revender peças, mas o modelo não funcionou como esperávamos”, diz Cyntia Kasai, gerente de ESG da C&A Brasil. “Entendemos que é preciso estruturar uma logística mais eficiente devido ao volume de lojas. É preciso dar ao cliente a possibilidade de deixar o produto na loja ou mandá-lo via correio, além de tratar as peças. Não é uma tarefa simples.” 

Virar parceiro de quem já sabe promover a revenda de peças é uma estratégia utilizada também no exterior. A varejista de fast fashion H&M comprou, em 2019, a plataforma sueca de revendas Sellpy, em um negócio de 20 milhões de euros. Com a boa demanda, em maio do ano passado a marca anunciou a abertura em 20 países da Europa. Além disso, em setembro de 2021 a H&M se uniu à empresa de tecnologia Reflaunt para lançar sua própria plataforma de moda de segunda mão no Canadá, a H&M Rewear.

Loja da H&M: a varejista comprou a plataforma de revendas Sellpy e expandiu para 20 países (Jin Lee/Bloomberg/Getty Images)

A moda do carbono 

O setor de roupas usadas surge, ainda, como uma solução para um problema antigo da indústria da moda: os impactos ambientais. O setor é responsável por 10% do total de emissões globais de carbono. Estima-se que o impacto da produção de uma camiseta de algodão seja equivalente ao de uma viagem de carro de 16 quilômetros. A venda de peças usadas reduz as emissões de carbono em 82%. 

Modelos de negócios que buscam lidar com esse exagero de produção vão além dos brechós. A varejista online Privalia, por exemplo, oferece produtos fora de coleção de mais de 1.500 marcas, com descontos de até 80%. “Recebemos 400.000 pedidos por mês. Isso equivale a 1,2 milhão de itens que deixam de ser descartados mensalmente”, diz Fernando Boscolo, presidente da Privalia. 

Promover um mercado de moda com menos impacto ambiental é uma tendência, sem dúvida. Mas a moda é cíclica, e não é a primeira vez que o vintage invade o mainstream.­ O que parece ser diferente, desta vez, é que a onda das roupas usadas surge com base em mudanças nos hábitos de consumo. Consumir menos, dar preferência a cadeias de artesãos, vestir-se de maneira autêntica e abrir o coração para a roupa usada estão na ordem do dia dos fashionistas. Se essa moda pega, o planeta agradece.  

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