Revista Exame

Esperando Godot

Tenho chamado 2024 de “o ano que não começou”. Estamos à espera de algo que não vem: um fim de ciclo nos EUA, que marcaria o início de uma retomada para as economias emergentes

O momento pede maior disciplina na  alocação de capital, diversificação regional  e entre moedas, manutenção de estratégias de hedge e proteção patrimonial (OsakaWayne Studios/Getty Images)

O momento pede maior disciplina na alocação de capital, diversificação regional e entre moedas, manutenção de estratégias de hedge e proteção patrimonial (OsakaWayne Studios/Getty Images)

Publicado em 25 de abril de 2024 às 06h00.

Estávamos em 1666, o ano apontado como apocalíptico por uma vertente do cristianismo. Sabbatai Zevi já havia realizado uma série de milagres em suas andanças, segundo os relatos da época, claro. Desde 1648, o rabino se declarava o novo Messias, capaz de libertar o povo judeu do desespero. De acordo com a profecia e as interpretações cabalísticas, o Salvador viria no ápice do sofrimento de seu povo. Apesar do alarde inicial, a coisa não foi muito longe. Poucos meses depois, Sabbatai se converteu ao Islamismo, decepcionando a maior parte de seus seguidores. No final, acabou exilado ao ser descoberto cantando salmos com judeus. Não conseguiu salvar nem a si mesmo.

Há, na melhor das hipóteses, uns 2.000 anos em que não encontramos um Messias por aí. Essa história de que o ungido viria no auge do desalento de seu povo seria mesmo uma profecia das sagradas escrituras, manifestação explícita da palavra de Deus, ou uma narrativa criada por humanos para acalentar o sofrimento e alimentar a esperança. No clássico Esperando Godot, de Beckett, Vladimir e Estragon discorrem sobre suas dores enquanto esperam a chegada de algo ou alguém que nunca vem.

Iniciamos 2024 à espera do corte das taxas básicas de juro nos países desenvolvidos, em especial nos EUA. O processo encerraria um período muito adverso para os ativos de risco em países emergentes, castigados desde o fim de 2021. Agora observaríamos dinâmica diametralmente oposta. Com a atividade desacelerando e a inflação indo para a meta, o Federal Reserve poderia reduzir o juro básico, conferindo menor atratividade relativa para os investimentos nos EUA e estimulando o fluxo para a periferia. O próprio Banco Central dos Estados Unidos indicou março como o mês provável para o início do ciclo de cortes de juro por lá.

O Brasil seria diretamente beneficiado, porque conta com valuations atrativos (estamos baratos, depois de anos sofrendo com fluxo negativo), com mercados líquidos, bom tecido empresarial, fartura de energia e comida, posição geo­gráfica privilegiada, destaque na transição energética, entre outras vantagens conjunturais e estruturais.

“Seria” — futuro do pretérito. Entramos em 2024 e a inflação nos EUA não só parou de desacelerar como, na ponta, voltou a se expandir com vigor. Como corolário óbvio, a ideia de que os juros seriam reduzidos em março nos EUA foi abandonada. O yield do Treasury de dez anos, talvez o preço mais importante do mundo, saiu de 3,82% para perto de 4,7% no ápice da dor. Os juros mais altos por lá retiraram recursos dos mercados emergentes — cerca de 25 bilhões de reais do dinheiro gringo já deixou a B3, mais da metade do fluxo positivo do ano passado.

Em paralelo, o frenesi em torno da inteligência artificial se intensifica a cada dia, drenando capital da periferia rumo ao rápido crescimento esperado para as empresas de tecnologia nos Estados Unidos. O excepcionalismo americano se renova, levando o índice do dólar ante as principais moedas ao seu patamar mais alto em cinco meses — o iene atingiu a mínima desde 1990.

Enquanto isso, o Brasil tropeçou nas próprias pernas. Adotamos uma retórica contrária ao bom ambiente de negócios ao flertarmos com intervenções na Petrobras, na Eletrobras e na Vale. Relembramos o pesadelo da MP 579 com nova medida provisória tentando baixar a conta de luz na marra. Liberamos crédito extraordinário de 16 bilhões de reais para mais dispêndios governamentais. Na sequência, reinventamos a definição de “longo prazo”, ao revisarmos para baixo as metas recém-divulgadas de superávit primário a partir de 2025. Ainda que as novas indicações estejam mais próximas ao esperado pelo consenso, a mudança ocorre em péssima hora, quando a maré global ameaça baixar e evidenciar quem está nadando pelado. Além disso, a mudança explicita a opção definitiva desta administração em não mexer no gasto público e de empurrar para o próximo mandato o necessário ajuste fiscal estrutural.

Tenho chamado 2024 de “o ano que não começou”. Estamos à espera de um fim de ciclo nos EUA que, ao que parece, nunca vem. Os juros de mercado que deveriam cair ao longo do ano só fizeram subir até agora. A expectativa de um ambiente econômico e financeiro bem melhor neste ano encontrou cenário diametralmente oposto.

O tal “higher for longer” nos EUA (juros mais altos por mais tempo) requer revisitarmos o ambiente de curto prazo para os investimentos. O momento pede maior disciplina na alocação de capital, diversificação regional e entre moedas, manutenção de estratégias de hedge e proteção patrimonial (ouro, petróleo e cybersegurança parecem boas opções), além de dilatação do horizonte temporal dos investimentos.

Uma primeira questão relevante a se observar se refere à janela temporal. Grande parte da deterioração dos mercados aconteceu num intervalo de apenas uma semana. Ainda que os ativos não respondam de maneira simétrica a eventos positivos ou negativos, há tempo suficiente para recuperação. Não precisamos ir muito longe: o ano de 2023 foi bastante positivo para o Ibovespa, ainda que a quase totalidade do movimento tenha se dado em apenas dois meses. Devemos ter uma tendência mais longeva só quando o Fed começar a cortar sua taxa básica de juro.

Aqui entra um segundo pilar da conclusão. Embora a tal “última milha” da convergência da inflação nos EUA à meta tenha se mostrado mais difícil do que se esperava no começo do ano, a tendência ainda é de caminhada em direção aos desejados 2%. Talvez a velocidade não seja a anteriormente pensada ou desejada, mas as melhores projeções de inflação apontam nessa direção, sobretudo porque questões de medição (dia das coletas), alta esporádica dos preços de energia e resistência dos aluguéis indicam certa transitoriedade dos preços.

O prognóstico de consenso é que os juros, embora demorem mais para cair e o façam em menor velocidade lá na frente, ainda serão menores em 2024. Se somos o país mais sensível à alta dos juros nos Estados Unidos, devería­mos também ser muito afetados na queda. Sobre o Brasil, a despeito das decisões ruins das últimas semanas, há muito mais ruído do que sinal propriamente dito. Separar as duas coisas é uma arte valiosa.

No dia 16 de abril de 2024, a capa dos dois maiores jornais do Brasil anunciava a morte do arcabouço fiscal no Brasil. Se está na imprensa, está no preço. Todos gostam de pregar a máxima de “compre ao som dos canhões, venda ao som dos violinos”. Poucos são capazes de aplicá-la na prática. O ano é longo.

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