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Pela diversidade, empresas começam a oferecer benefícios como congelamento de óvulos e fertilização

Tendência nos Estados Unidos e na Europa, os tratamentos de fertilidade estão entrando no pacote de benefícios corporativos do Brasil, movimentando um mercado de 800 milhões de dólares em investimentos só em 2022

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Diego Micheletti, diretor de vendas da Microsoft (sentado), seu marido, Paulo Daltro Barreto, e o cachorro Peanut: a empresa reembolsou até 80% das despesas do casal (Divulgação/Divulgação)

Diego Micheletti, diretor de vendas da Microsoft (sentado), seu marido, Paulo Daltro Barreto, e o cachorro Peanut: a empresa reembolsou até 80% das despesas do casal (Divulgação/Divulgação)

Por muito tempo a ideia de virar pai não passou pela cabeça de Diego Micheletti, de 42 anos, diretor de vendas na Microsoft Brasil. Mais inconcebível ainda era a ideia de contar com a ajuda da empresa onde trabalha há 17 anos para viabilizar a empreitada.

Micheletti foi o primeiro funcionário brasileiro da Microsoft a utilizar o benefício de reembolso de até 80% das despesas com tratamentos para fertilidade, oferecido desde 2022. Micheletti é um homem gay num relacionamento estável há quase 20 anos. A vontade de ser pai veio na pandemia. “Achamos o processo de adoção muito longo”, diz ele.

“Além disso, queríamos ter a experiência completa, desde o nascimento do bebê.” Após pesquisas sobre as alternativas disponíveis para casais homoafetivos, Micheletti e o marido, Paulo Daltro Barreto, optaram pela barriga solidária, na qual a mulher designada para gestar a criança precisa ter uma relação de parentesco de até quarto grau com um dos pais da criança — e não pode cobrar nada por isso. (A barriga de aluguel é proibida pela Justiça brasileira.).

O processo dura um ano e envolve assessoria de advogado, além de exames e acompanhamento psicológico dos envolvidos. O caso de Micheletti demorou ainda mais por causa da pandemia — só em agosto de 2022 eles concluíram a fertilização com a ajuda de uma prima dele disposta a ser a genitora. Micheletti não divulga quanto pagou, mas afirma que o processo chega a custar 50.000 reais.

No fim do processo, ele soube da decisão da Microsoft de incluir na cobertura do plano de saúde corporativo tratamentos de fertilidade como o dele. “O benefício foi válido também de forma retroativa”, diz Micheletti. “Submeti documentos como notas fiscais de meus gastos e fui ressarcido em 80%.” 

A Microsoft faz parte de um grupo ainda pequeno, mas em expansão acelerada, de empresas dispostas a cus­tear parte ou 100% dos tratamentos de fertilidade de seus funcionários. As big techs dos Estados Unidos saíram na frente nessa discussão.

Em 2014, em meio à pressão por mais mulheres em empresas de tecnologia, Apple e Facebook anunciaram um subsídio de 20.000 dólares a funcionárias dispostas a congelar os óvulos. De lá para cá, o tema evoluiu com a combinação de uma preocupação crescente das empresas com a agenda ESG com a vontade de reter talentos.

Só no período entre 2019 e 2021, o volume de empresas globais com algum tipo de benefício de planejamento familiar saltou 60%, para 758, segundo a FertilityIQ, startup americana dedicada a conectar médicos especializados em reprodução humana a pessoas em busca desse tipo de tratamento.

De acordo com relatório da startup, empresas de segmentos mais tradicionais, como varejo, bens de consumo, saúde e indústria estão entre as mais entusiasmadas com a ideia. Nos Estados Unidos, 15% das empresas com mais de 500 funcionários já oferecem cobertura para o congelamento de óvulos em planos de saúde, segundo a consultoria Mercer. Para a fertilização in vitro, na qual o espermatozoide é fecundado em laboratório, o número é ainda maior: 36%.

Lygia Imbelloni, da Merck Brasil: “Muitas mulheres ainda não sabem da importância de preservar a fertilidade” (Divulgação/Divulgação)

O Brasil está longe da realidade dos Estados Unidos, mas reúne muitas condições para o benefício da fertilidade avançar. Por aqui, só 3% das empresas cobrem tratamentos para fertilização in vitro ou inseminação artificial. Um número ainda mais diminuto — 1% — custeia o congelamento de óvulos, segundo pesquisa da Mercer Marsh Benefícios com 737 empresas consultadas em 2021.

Sendo assim, muitas mulheres nem sequer cogitam a possibilidade de construir uma carreira em razão do percalço para conciliar compromissos profissionais com os afazeres domésticos. Quem trabalha e engravida tem uma chance alta de precisar largar tudo — 48% das mulheres saem do mercado de trabalho um ano após a gravidez, segundo pesquisa da Fundação Getulio Vargas. Quem opta por focar a carreira acaba adiando a hora de ter filhos.

Um sinal disso é o fato de o número de mães com 30 anos ou mais ter subido de 24% do total, em 2000, para 38% 20 anos mais tarde, segundo o IBGE. A demora implica uma gestação mais difícil. Entre 35 e 40 anos, a quantidade e a qualidade dos óvulos reduzem drasticamente, gerando uma corrida contra o relógio biológico. Por isso, o congelamento de óvulos, técnica de estocagem de gametas femininos para serem utilizados no futuro, sem prazo determinado, surge como uma solução. 

(Arte/Exame)

Salvo exceções, o congelamento de óvulos está fora do rol coberto pelo SUS ou por planos de saúde particulares. As mulheres interessadas precisam desembolsar até 30.000 reais para fazer o procedimento e mais uma anuidade de 1.000 reais para manter o óvulo em clínicas de fertilização. O sucesso do tratamento depende de uma boa quantidade de óvulos maduros — eles costumam estar aptos para a fecundação tardia.

“Isso varia de acordo com a idade da mulher e a reserva ovariana disponível”, diz Matheus Roque, médico especializado em reprodução na clínica Mater Prime, de São Paulo. “Quanto mais velha, menor o estoque.” Ou seja, caso a taxa de gametas saudáveis seja baixa, é preciso refazer o procedimento — e pagar mais uma vez por ele.

Como poucas mulheres dispõem de recursos e de paciência para o esquema tentativa e erro do congelamento de óvulos, o número de tratamentos está muito aquém do potencial. Em 2021, foram 9.311 congelamentos no país, de acordo com a Anvisa. Só 187 centros de reprodução humana estão devidamente instalados aqui — boa parte deles na capital paulista.

“O mercado de reprodução humana cresceu pouco comparado com o tamanho da população brasileira”, diz Flavio Sardinha, diretor de operações da Engravida, rede de clínicas de reprodução humana com uma pegada mais acessível — o tíquete máximo ali é de 12.000 reais.

“Toda forma de aumentar o acesso, seja via benefício corporativo, seja de outra forma, é positiva para democratizar esses serviços", diz. 

Muitas vezes o empurrão da empresa é o suficiente para mulheres realizarem o sonho de ser mãe, ainda que tardiamente. Vide o caso da paulistana Mara Lemos, de 39 anos, coordenadora do laboratório Fleury. Em 2021, o Fleury criou uma divisão de saúde reprodutiva. Os mais de 15.000 funcionários passaram a ter acesso a tratamentos de fertilidade com descontos de até 40%.

Lemos foi uma das primeiras a utilizar o benefício num congelamento de óvulos. Além do desconto no procedimento em si, ao redor de 3.000 reais, ela também teve direito a seis meses de manutenção gratuita do material. “Foi um peso que saiu das minhas costas”, diz ela. “Quero ser mãe, mas ainda não tenho parceiro e por muito tempo fiquei focada na carreira. Quando veio o anúncio do benefício, pensei: “É agora ou nunca’.” 

Matheus Roque, da Mater Prime: 20% mais congelamento de óvulos em dois anos (Divulgação/Divulgação)

No caso do Fleury, onde as mulheres compõem 80% da mão de obra, o desconto nos tratamentos de fertilidade veio num conjunto de medidas para olhar a saúde dos funcionários de forma integral, como a instalação de ambulatórios nas sedes corporativas.

Em outras companhias, como o gigante farmacêutico Merck, o subsídio nos tratamentos de reprodução humana foi criado numa tentativa de aumentar o número de mulheres na liderança.

Desde 2019, a operação brasileira da Merck dá desconto de até 90% em medicamentos úteis no processo de congelamento de óvulos e fertilização in vitro. Em 2021, a companhia ampliou a cobertura por meio de parcerias com clínicas de reprodução humana para custear até 30% dos procedimentos em si.

Em conjunto a outras medidas para equidade de gênero, os subsídios nos tratamentos de fertilidade colaboraram para elevar a participação de mulheres em cargos de liderança de 33% em 2015 para quase 49% em 2021. “A preservação da fertilidade para as mulheres é um dos pilares para a equidade de gênero”, diz Lygia Imbelloni, diretora de fertilidade na Merck Brasil.

"“Com o benefício, estamos empoderando essas profissionais para decidirem quando, de fato, vão querer ser mães, sem a interferência do peso da carreira ou da idade.”"Lygia Imbelloni, diretora de fertilidade na Merck Brasil.

Em quatro anos, 34 funcionárias da Merck utilizaram o subsídio da empresa para os medicamentos ou procedimentos de reprodução. Para além do recurso financeiro, um aprendizado por ali foi o de investir em treinamento sobre o assunto.

“Muitas mulheres ainda não sabem da importância de preservar a fertilidade e, quando o assunto é infertilidade, principalmente dos homens, ainda existe muito tabu”, diz Imbelloni. Nos últimos meses, a Merck organizou workshops e contou com o apoio de uma startup para organizar clubes entre funcionárias para a troca de informações sobre saúde sexual. “Como uma empresa que atua com fertilidade, é nosso papel começar essa educação de dentro para fora”, diz. 

(Arte/Exame)

Para além do interesse crescente das empresas, os tratamentos de fertilidade viraram um tema quente mundo afora em razão da pandemia. O isolamento social adiou muitos planos — inclusive o da maternidade — e colaborou para a demanda por tratamentos disparar. Nos Estados Unidos, a crise sanitária colaborou para uma alta de 39% no congelamento de óvulos desde o ano de 2020. No Brasil, a procura pela fertilização in vitro expandiu 33% em 2021, para 46.174 procedimentos — um recorde.

Os dados de 2022 ainda estão em atua­lização e, por ora, mostram uma queda de 16% em relação a 2021, indicando certa acomodação do mercado. “O boom de 2021 foi motivado pela reabertura das clínicas após a quarentena, mas também pelo aumento da demanda”, diz Matheus Roque, da Mater Prime. Por ali, a procura por congelamento cresceu 20% em dois anos e motivou a entrada da empresa em novos mercados — desde janeiro, a clínica tem pacotes para empresas dispostas a oferecer o tratamento de graça a funcionários ou custear parte dele.

Aleksandra Jarocka, da startup de fertilidade Fertably: 6.000 vidas na carteira em seis meses de operação (Gabriel Reis/Divulgação)

O mercado de negócios de fertilidade atende, também, uma multidão de pessoas com problemas relacionados à falta dela. Cerca de 15% dos casais em idade reprodutiva no mundo sofrem com infertilidade, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde.

A lacuna causada pelo alto custo desses tratamentos vem atraindo a atenção de startups especializadas em reprodução humana — as fertility techs, no jargão do setor. Trata-se de um nicho olhado com atenção pelos investidores.

Mesmo na seca de recursos para o venture capital, em 2022 os empreendedores das fertility techs levantaram 855 milhões de dólares em investimentos, oito vezes o patamar de 2012, de acordo com a PitchBook, catálogo digital dos investimentos em venture capital. No meio do alvoroço, duas fertility techs dos Estados Unidos viraram unicórnios.

Uma delas é a Maven, uma plataforma de serviços de telemedicina para planejamento familiar, como consultas a médicos especializados, parteiros e psicólogos, utilizados por mais de 450 clientes, entre eles gigantes como o de cosméticos L’Oréal e o laboratório Sanofi.

Outra é a Kindbody, uma rede de clínicas de reprodução humana que também dá consultoria para empresas dispostas a colocar esse tipo de tratamento no rol de benefícios. Entre as 350.000 vidas cobertas pela Kindbody estão os funcionários da varejista Walmart, a maior empregadora dos Estados Unidos. 

(Arte/Exame)

No Brasil, o nicho das empresas de tecnologia dedicadas à fertilidade cresce ancorado na demanda das empresas. Aberta há seis meses pela empreendedora Aleksandra Jarocka, a paulistana Fertably já atende 6.000 pessoas.

O negócio da Fertably conecta empresas a clínicas de reprodução, modela programas de benefícios e mantém uma plataforma virtual pela qual funcionários de empresas clientes podem tirar dúvidas com especialistas sobre os tratamentos. Polonesa e casada com um brasileiro, Jarocka teve a ideia da startup durante um trabalho como negociadora de contratos de planos de saúde na Deel, uma plataforma online de RH.

A meta dela é crescer 20% ao mês e dobrar o número de funcionários até dezembro. “Se olharmos o mercado dos Estados Unidos há oito, dez anos, ele também não era maduro”, diz Jarocka. “As empresas brasileiras também vão perceber que a preservação da fertilidade e o planejamento familiar de maneira geral são temas importantes para os negócios porque retêm talentos.”

Exemplo disso é o de Micheletti, da Microsoft. “O acesso ao tratamento de fertilidade aumentou meu senso de pertencimento à organização“, diz ele. Com o parto previsto para meados de maio, Micheletti está prestes a usufruir de outro benefício oferecido pela multinacional: uma licença parental de seis meses para cuidar do filho, que ganhará o nome de Matheus Renato.

Pela legislação brasileira, só as mães têm direito a essa licença, e por um prazo de só quatro meses. “A ­Microsoft, como empresa, acredita que a dedicação de mais tempo para minha família me torna não apenas uma pessoa melhor mas também um profissional melhor”, diz ele.  

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