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Em decisão histórica, França se tornará primeiro país a proteger o direito ao aborto na Constituição

Votação ocorre quase dois anos após Suprema Corte americana ter suspendido reconhecimento do procedimento como um direito federal, levantando um alerta entre os franceses

Deputados e senadores aplaudem durante o congresso das duas casas do parlamento em Versalhes (Emmanuel Dunand/AFP/Getty Images)

Deputados e senadores aplaudem durante o congresso das duas casas do parlamento em Versalhes (Emmanuel Dunand/AFP/Getty Images)

Agência o Globo
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Agência de notícias

Publicado em 4 de março de 2024 às 14h56.

Última atualização em 4 de março de 2024 às 14h57.

A ilustre sala do Congresso, criada no final do século XIX no Palácio de Versalhes, é palco nesta segunda-feira de uma votação histórica. Nela, a França torna-se o primeiro país a proteger explicitamente em sua Constituição a "liberdade garantida" das mulheres de realizar um aborto, após vários retrocessos na pauta.

Há quase dois anos, a Suprema Corte dos EUA suspendeu o reconhecimento do aborto como um direito federal — fazendo um alarme soar em Paris e no resto do mundo.

— Hoje é um passo fundamental que podemos dar. Uma etapa que ficará para a história, uma etapa que deve tudo às anteriores — destacou o primeiro-ministro Gabirel Attal, citado pelo Le Monde, em seu discurso no Congresso. — Digo a todas as mulheres, dentro e fora das nossas fronteiras, que a era de um mundo de esperança está começando.

Se validado, o excerto "A lei determinará as condições sob as quais a mulher é livre para interromper voluntariamente a gravidez" será inserido no artigo 34 da Constituição. A mudança é saudada por políticos de esquerda e de centro, enquanto senadores de direita dizem em particular que se sentem pressionados a dar o sinal verde.

Com a Torre Eiffel de fundo, muitos franceses acompanham a votação por um telão instalado pela prefeitura de Paris e pela ONG Women's Foundation na praça do Trocádero, em Paris. Um mar de bandeiras roxas e pessoas emocionadas inundou a região.

Os parlamentares votam em um Congresso extraordinário, que reuniu as duas câmaras do Parlamento, e encerram um processo legislativo de um ano e meio, impulsionado pela esquerda e pelo partido governista. A sessão foi aberta às 15h30 (horário local) pela presidente da Assembleia Nacional, Yaël Braun-Pivet, que destacou ter atravessado uma galeria composta "exclusivamente por bustos masculinos". Em seu discurso, a parlamentar afirmou que a França está "na vanguarda" e destacou que ainda "há muito a fazer na questão de igualdade e violência contra as mulheres".

— Tenho orgulho de poder homenagear aqui todos aqueles que escreveram, que agiram e também aqueles que ainda lutam todos os dias, aqui perto ou longe de nós, para que subamos metro a metro o íngreme muro que leva à igualdade entre mulheres e homens — disse Braun-Pivet.

Attal discursou em seguida, afirmando que o país tem "uma dívida moral" com as mulheres e que a decisão desta segunda é "o culminar de uma luta" que se segue desde a Revolução Francesa, em 1789, até a luta da ministra da Saúde Simone Veil, quase dois séculos depois, para descriminalizar o procedimento. Ele também prestou homenagem às ONGs e organizações que lutam pelos direitos das mulheres.

A última vez que um congresso foi convocado para mudar a constituição foi em 2008, quando os legisladores aprovaram amplas reformas sob o comando do ex-presidente Nicolas Sarkozy, que incluíam a limitação dos presidentes a dois mandatos, bem como melhores salvaguardas para a independência e a liberdade de imprensa.

Vaticano se manifesta

Para ser aprovada, a medida exige o apoio de três quintos dos legisladores presentes. Mas, do total de 925 deputados e senadores franceses, 760 já haviam dado seu voto favorável à medida nas votações unicamerais: de maneira esmagadora na Assembleia Nacional, no dia 30 de janeiro (492 a favor e 30 contra), e vencendo a tendência direitista no Senado, na última quarta-feira (267 a favor e 50 contra), no que o presidente Emmanuel Macron chamou de "passo decisivo".

Macron havia prometido no ano passado consagrar o procedimento — legal no país desde 1975 — na Constituição após a decisão da Suprema Corte americana. Se aprovada, a cerimônia final de inscrição do aborto na Constituição, com a presença do presidente francês, poderá ocorrer em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, de acordo com uma fonte a par do assunto à AFP.

Em 2022, Paris estendeu o prazo para 14 semanas, onde o número de interrupções voluntárias da gravidez permaneceu estável por duas décadas, em torno de 230 mil por ano. No entanto, o acesso é "bastante difícil" nas áreas rurais, disse à AFP a deputada centrista Éleonore Caroit, para quem a constitucionalização "fortalecerá o acesso ao aborto nesses lugares".

Apesar da maioria dos indivíduos no país apoiar a iniciativa de dar proteção extra ao direito — uma pesquisa realizada em novembro de 2022 pelo grupo de pesquisa francês IFOP revelou que 86% dos franceses apoiavam a inclusão do aborto na Constituição —, bispos expressaram "tristeza" com a decisão, assim como grupos minoritários e alguns legisladores.

Pouco antes da votação, o Vaticano disse que a inclusão do aborto na Constituição equivale ao "direito de suprimir uma vida humana". Uma manifestação foi convocada pela organização antiaborto March for Life minutos antes da votação em Versalhes "para defender a vida das crianças não nascidas e de todas as vítimas" do procedimento.

Sem baixar a guarda

O aborto foi legalizado na França em 1975, em uma lei defendida por Simone Veil, um ícone dos direitos das mulheres que recebeu a rara honra de ser enterrada no Panteão após sua morte em 2018. Seu filho, Jean Veil, esteve presente na votação no Palácio de Versalhes. Quando a campanha política começou a sério, quatro anos antes da descriminalização, "nunca poderíamos imaginar que o direito ao aborto seria um dia inscrito na Constituição", disse à AFP Claudine Monteil, diretora da associação Femmes Monde (Mulheres no Mundo).

Monteil foi a mais jovem signatária do "Manifesto das 343", uma petição de 1971 que 343 mulheres assinaram, admitindo ter interrompido ilegalmente uma gravidez. Na época, estimava-se que 700 mil a 800 mil mulheres abortavam a cada ano.

Um ano antes, em 1974, outra importante feminista, Simone de Beauvoir, havia alertado que "uma crise política, econômica ou religiosa" poderia colocar os direitos das mulheres novamente em questão, lembrou a ativista.

— [Nesse sentido,] o comportamento da Suprema Corte dos EUA fez um favor às mulheres de todo o mundo porque nos despertou — disse Monteil.

Em junho de 2022, a Suprema Corte americana anulou a histórica decisão Roe vs. Wade, de 1973, acabando com o direito federal ao aborto. Com o veredito, a interrupção voluntária da gravidez foi banida ou significativamente limitada em quase metade dos 50 estados americanos, com impactos significativos para as mulheres pobres e pertencentes a minorias.

Nesse contexto, antes da votação, muitos parlamentares destacaram em seus discursos a aprovação como uma vitória não apenas das francesas, mas de todas as mulheres do mundo, e alertaram que a validação do texto não garantirá a supressão dos "ventos furiosos dos fundamentalistas religiosos e populistas":

— A extrema-direita europeia está em movimento e a batalha está acirrada. Não sejamos ingénuos o suficiente para acreditar que este mau vento deixará de soprar nas nossas fronteiras — destacou o senador François Patriat, do partido Renascimento.

'Nossa luta, sua vitória'

Antes da decisão francesa, o Chile tentou introduzir o direito das mulheres a "uma interrupção voluntária da gravidez" em seu projeto de nova constituição em 2022, que os chilenos rejeitaram em um referendo. Vários países dos Balcãs têm essa proteção, mas implicitamente, como um legado do "direito humano de decidir livremente sobre o nascimento de crianças" incluído na Carta Magna de 1974 da então Iugoslávia.

Cuba também faz uma referência velada aos "direitos reprodutivos" em sua Constituição e, em alguns países africanos, como o Quênia, inclui exceções a uma prática proibida constitucionalmente. Por outro lado, alguns países proíbem implicitamente o aborto em suas constituições ao proteger o direito à vida desde a concepção, como a República Dominicana, as Filipinas, Madagascar, Honduras e El Salvador.

— Quer os reacionários gostem ou não, nossos corpos não têm uma missão preexistente. O significado de uma vida é sempre aquele que decidimos escrever — bradou a deputada Mathilde Panot do partido França Insubmissa (LFI, em francês), citada pelo Le Monde, em um aceno às mulheres de outros países "que estão lutando pelo direito de controlar seus próprios corpos". — Como um eco, esta votação de hoje diz a elas: sua luta é nossa. Esta vitória é de vocês.

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