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Kraft Heinz

Patricio, da Kraft Heinz, conta como reenergizar um gigante de US$ 25 bi

Os desafios de injetar ambição e inovação na maior fabricante de alimentos dos EUA – e por Zoom, ainda por cima

Miguel Patricio: ele cozinhou porco alentejano ao vivo para inspirar os funcionários na pandemia (Kraft-Heinz/Divulgação)
Miguel Patricio: ele cozinhou porco alentejano ao vivo para inspirar os funcionários na pandemia (Kraft-Heinz/Divulgação)
LA

Lucas Amorim

16 de março de 2021 às 07:00

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Miguel Patricio: ele cozinhou porco alentejano ao vivo para inspirar os funcionários na pandemia (Kraft-Heinz/Divulgação)

Após duas décadas na cervejaria AB InBev, o português Miguel Patricio assumiu há 20 meses a presidência global da Kraft Heinz, das mais tradicionais fabricantes de alimentos dos Estados Unidos. O desafio pela frente era gigantesco: como conectar aos dias atuais uma empresa de alimentos com produtos icônicos do século 20 (e 19)? Como atender à demanda crescente por alimentos menos processados, mais saudáveis e vendidos cada vez mais em canais digitais? Qual o futuro do símbolo americano, o ketchup que data de 1.869?

Patricio ainda precisou encarar a pandemia, que acelerou mudanças em hábitos de consumo e o forçou a conduzir a transformação de uma empresa de US$ 25 bilhões de receita em home office. O escritório da Kraft Heinz, num edifício de mais de 80 andares em Chicago, segue fechado e sem data para reabrir. Com mais pessoas em casa, a companhia se beneficiou. O sucesso no longo prazo vai exigir mais inovação, e mais risco. Com um detalhe: sem o olhar próximo de Jorge Paulo Lemann, sócio do fundo 3G Capital, dono da empresa, que acaba de deixar o conselho de administração.

Para o ano sem precedentes que foi 2020, a Kraft-Heinz trouxe um crescimento de 5% na receita líquida, para US$ 26,2 bilhões. As margens tiveram expansão, pois o Ebitda (ajustado) aumentou 10%, para US$ 6,7 bilhões. Não é pouca coisa em um ano de restaurantes fechados e com tanta bagunça no mundo todo. Em especial, em uma companhia afetada por uma baixa contábil superior a US$ 15 bilhões, realizada há dois anos, o que mexeu com o ânimo dos investidores e dos funcionários. Na bolsa de Nova York, a companhia vale hoje pouco mais de US$ 47 bilhões. As ações, negociadas acima de US$ 38, estão no pico desde o fatídico anúncio, mas distantes da máxima superior a US$ 95, de 2017.

Patricio falou com o EXAME IN por chamada de vídeo, após anunciar resultados históricos em 2020 — e negou que possa ser um dos cotados a assumir a presidência da cervejaria AB InBev, que busca um substituto para o brasileiro Carlos Brito.

Pouco antes de assumir você falou com a EXAME e disse que tinha desafio de mudar os negócios, energizar as pessoas e fortalecer as marcas. Já deu tempo de fazer tudo isso em um ano e meio?

A parte de gente e de cultura foi meu principal foco no curto prazo, quando eu entrei na companhia. Essa era minha principal preocupação um ano e meio atrás. Era um time que tinha perdido muito, que não tinha confiança, que não acreditava que podia ganhar, desengajado. A rotatividade era recorde. Era preciso fechar a porta e fazer as pessoas acreditarem e construir um time muito forte. Perguntamos se as pessoas recomendariam a companhia a seus amigos, e triplicamos esse número. Ainda tem tudo para ser feito, mas as pessoas estão acreditando. Além disso tivemos um ano incrível e pagamos um bônus recorde, o que faz as pessoas acreditarem no futuro. Fizemos isso num ano que tinha tudo para não acontecer. Como você evangeliza via zoom?

E como você fez?

É preciso usar o zoom como um canal de comunicação, e não só de reuniões. Definimos três plataformas de comunicação com nossos funcionários. Um era “over comunicate the business”. O tempo todo precisamos comunicar. Eu não tinha reuniões diárias com meu time, e agora tenho. Também usamos o zoom para inspirar. Usamos o zoom para trazer o mundo externo. O fundador da Netflix falou sobre empreendedorismo e criatividade. Trouxemos jogadores da NBA falando de como se superar sob pressão. A terceira plataforma de comunicação foi entretenimento. Fizemos até concursos de talentos e de cozinha. Eu cozinhei ao vivo um prato português — carne de porco alentejana, com vôngoles. É uma combinação meio maluca, mas maravilhosa. Essa parte da comunicação é vital. Fiz muitos happy hours com turmas e pessoas. Tudo isso faz com que as pessoas comecem a acreditar.

Quais foram as primeiras ações para começar a mudar a cultura da companhia, quando você assumiu?

Diziam que eu não conseguiria trazer talento em virtude de nosso histórico ruim. Logo que cheguei fui fazer uma palestra na universidade de Chicago, uma das melhores escolas de negócios do país. O time de recursos humanos estava com medo de que não conseguíssemos ter candidatos para nosso programa de MBA por reputação. No passado, falávamos muito que as pessoas poderiam fazer carreira rápido. Eu não queria essa promessa. Queria mostrar tudo que estavam falando da nossa empresa, por logo o bode na sala. E contar a eles porque eu vim para a companhia. Não tem nada mais satisfatório que um “turn around”. Disse a eles: não venham se vocês querem uma empresa estável, em que vocês vão aprender sobre o que outros fizeram no passado, não venham para a Kraft Heinz. Mas se quiserem transformar, podemos ser a empresa certa. É como o sabor de ir para uma startup, mas de US$ 25 bilhões. Você poderá deixar um legado. Conseguimos o dobro das pessoas em relação ao ano anterior. O que atraiu foi a sinceridade e a vontade de transformar junto.

Vocês atraíram executivos de históricos muito diversos. É diferente da fórmula mais padrão de atração de talentos do 3G? Você precisou recomeçar uma empresa unindo pessoas de expertises diferentes?

Os 3Gs são as pessoas que mais me inspiraram na vida. Eles têm uma combinação muito rara e incrível de ambição e humildade. Ambição de acreditar que podem conquistar o mundo e humildade de aprender todos os dias. Essa cartilha que você chamou de 3G, ela não existe, é um documento aberto. Você tem que refletir e melhorar todos os dias. Há hoje um entendimento de que ter pessoas todas iguais a você é desvantagem. Diversidade de pensamento é muito importante. Se você tem um time inteiro pensando como você, não consegue ser criativo.

Você entrou na empresa em junho de 2019, e teve seis meses antes da pandemia. No que a pandemia confirmou e no que ela mudou sua estratégia?

Não mudou nada. A estratégia foi definida antes, e tem que ser de longo prazo. A pandemia não vai ficar aqui para sempre. Obviamente que precisa ser adaptada no curto prazo. Definimos, por exemplo, que uma das nossas estratégias para crescimento era fortalecer food servisse (voltado a bares, hotéis e restaurantes). É um canal ótimo para fortalecer marcas. Se você vai ao Burger King, por exemplo, e vê um ketchup Heinz que gosta, é como amostra grátis. Mas aí veio a pandemia e food service caiu muito. Mas a estratégia não muda. A pandemia nos deu um tempo precioso para mudar e transformar a empresa. A empresa perdia participação de mercado e lucratividade. E estamos ganhando.

As pessoas seguem buscando marcas icônicas ou preferem marcas mais locais e novidades? A pandemia mudou a forma como as pessoas veem as grandes marcas?

Mudou. Comida passou a ser um dos poucos prazerem que as pessoas têm. Você não pode ir ao cinema, nem pular o carnaval na rua. Mas pode cozinhar com sua família, como forma de prazer. Houve um movimento muito grande das pessoas fazerem pão, fazerem a receita da mãe, da vó. As pessoas foram buscar suas memórias afetivas, e elas estão muito ligadas às marcas. Não é coincidência que private label perdeu mercado em quase todas as categorias. E quem ganhou foram as grandes marcas. Essa é uma chance muito grande que as grandes marcas têm de trazer e manter esses consumidores. Conseguimos trazer um novo perfil de consumidores, mais jovem e mais diverso. Agora precisamos manter para quando acabar a pandemia. Essa é uma das grandes obsessões que temos.

Grandes marcas navegam melhor no e-commerce? As pessoas tendem a preferir aqueles produtos que elas já conhecem?

Acho que sim. Mas o e-commerce ainda é parte pequena de nosso negócio. Dobrou ano passado, mas ainda é 5%.

O crescimento sem volta do consumo online de alimentos é moda passageira ou veio para ficar?

Eu não tenho dúvida de que veio para ficar. Iria acontecer de qualquer forma.  Mas as vendas online multiplicaram por 5 ou 10 em um ano e não em cinco anos. A tendência já estava aí. Quando você vai, você não volta. Aqui em casa compramos por um aplicativo que em 3 horas entrega. É muito cômodo. Essa conveniência que as compras online trazem entrou na rotina das pessoas e não vai voltar.

E o que muda para a Kraft Heinz? O mercado de vocês é conhecido pela intensa disputa por espaço na gôndola nos supermercados e por marketing ativo no ponto de venda. Agora é uma forma diferente de se comunicar, não?

Nos EUA, Canadá e Inglaterra já estávamos preparados em e-commerce antes da pandemia. O que fizemos foi aumentar estrutura. Aumentamos a intensidade. A luta é diferente no e-commerce. Você precisa estar na lista das pessoas, e depois a tendência de recorrência é muito grande. Outra coisa que temos feito é fazer associações para resolução de problema: uma cesta de café da manhã ou para jantar, por exemplo. E com isso tiramos proveito da escala. Na Inglaterra, Canadá e Austrália fazemos também venda direta ao consumidor. Você recebe uma caixa com produtos para seu churrasco com molhos, salsicha, queijo. Essas vendas diretas nos trazem dados valiosos. Usamos para fazer pesquisas de produtos, vemos quantos por cento de pessoas estão comprando quais produtos. Estamos entrando numa era de ser mais “data driven” na Kraft Heinz.

Nesse ponto achei interessante a simplificação que vocês fizeram: de 55 para 6 categorias. Como conseguir agrupar a informação para poder tomar decisões?

O que fizemos foi repensar a empresa pela lente do consumidor. Entender suas decisões de compra. Antes estávamos nas categorias do supermercado: queijo salsicha, iogurte, gelatina, ketchup. Assim você pensa sempre pelo lado do produto. Mas o consumidor quer soluções para seus problemas. Antes pensávamos em molho para salada como molho para salada — e aí a inovação era sempre em sabores. Mas o consumidor quer é sabor para a salada, e isso pode ser molho, mas também nozes, proteína, etc. E aí você aumenta muito suas possibilidades. Dividimos a companhia em “consumer needs”.

Pensando no portfólio da empresa: quando decidir investir ou desinvetir de determinados setores?

Dividimos nossos negócios em três partes: acelerar, reenergizar e transformar. Quando não se consegue transformar, reenergizar ou crescer, o melhor é vender. Porque pode ser que alguém consiga fazer isso. Queijo é um exemplo. É uma categoria que tem muito pouca diferenciação entre a minha marca e os private labels dos supermercados. E é difícil agregar valor, além de que ficamos reféns dos preços das commodities. Vamos usar os recursos das vendas para reduzir dívida e investir em crescimento.

Voltando às pessoas. Você teve o desafio de ampliar o apetite ao risco dentro da empresa, com uma cultura que premia quem arrisca, mas ao mesmo tempo equilibrar com eficiência operacional. Como fazer as duas frentes andar junto?

Não podemos sacrificar ninguém pelo erro. Isso não significa dar o troféu para o maior fracasso, mas para o maior aprendizado. Precisamos ser melhores em fazer coisas pequenas e aprender rápido com o erro em vez de fazer coisas muito grandes. Quando cheguei aqui todas as inovações eram nacionais. Eu disse: não teremos mais inovação nacional, a taxa de insucesso é muito grande e inovação nacional joga um caminhão de dinheiro no lixo. Vamos fazer regional, aprender, e aí expandir para nacional. Para fazer isso a gente tem que se adaptar. As companhias grandes foram pensadas para ganhar escala, e não para fazer coisas pequenas. É tudo sempre muito grande. Mas precisamos investir em processos e mentalidade para inovar diferente, e para ter fábricas menores. Agora vamos investir no Brasil para ter fábricas pequenas para aprender rápido e depois ganhar escala. Não temos nada dessa forma ainda — as fábricas da Kraft Heinz têm escala gigante.

Em termos de logística, menos também é mais? Como fazer o produto chegar rápido e com custo menor na casa das pessoas?

Trouxemos a Amazon para dentro de nossos centros de distribuição, em vez de irmos para os centros de distribuição deles. Para ganhar tempo e melhorar a eficiência. Somos a maior empresa de alimentos dos EUA, e precisamos fazer mais dessas coisas. Antes, com 55 categorias, não tirávamos proveito dessa escala. Pensávamos no ketchup, depois na mostarda, depois na salsicha. Nosso grande desafio é tornar a empresa mais ágil. Empresas grandes não precisam perder agilidade. Um alerta do risco de inovação que vem dos pequenos foi visto no mercado de cervejas artesanais. As empresas grandes precisam se reinventar — e estamos trabalhando nisso.

Você falou sobre o Brasil. O país tem a Quero, como marca de combate, e força na marca Heinz em ketchup. Mas como fazer do Brasil um mercado mais relevante, apesar do câmbio?

Estamos muito dependentes de economias desenvolvidas, mas o crescimento do mercado de comida vem de países emergentes. A gente precisa transformar esses países numa máquina de crescimento. O Brasil é um grande exemplo. Crescemos dois dígitos em faturamento e lucro no Brasil, na Rússia, na Turquia em dois anos. O mesmo acontecerá na China. O Brasil ainda não tem o tamanho que gostaríamos, mas tem um time muito bom e resultados muito bons. Vamos precisar aumentar a capacidade de inovação no país. A marca Heinz não existia há 10 anos no Brasil. Agora precisamos expandir para outras categorias e outros produtos. Os países em desenvolvimento têm que ser esse motor de crescimento, assim como China e o Oriente Médio. Para isso, precisamos aumentar nossa capacidade de inovação.

Bill Gates tem defendido mudar completamente a forma como se produz comida para zerar as emissões de carbono. Mudar a forma de fabricar comida é uma agenda urgente da Kraft Heinz?

Alimentos à base de planta são um caminho. Metade da emissão de CO2 vem do mundo animal. Comida com planta tem muito menos fertilizante, usa muito menos área e é uma comida que ajuda muito no impacto. Se a dieta das pessoas mudar, a emissão de CO2 deve cair muito. Carne a base de plantas ainda é cara na comparação com a animal. Mas é uma questão de tempo. Não é comida para vegetariano. É uma solução para emissão de gás carbônico. Mas tem um trabalho muito grande a ser feito com embalagens e com distribuição. Haverá uma distribuição muito grande nos próximos anos.

A Bloomberg chamou os resultados das empresas de comida como “sem graça” – e era um elogio. São empresas com resultados consistentes e que cresceram na pandemia. Mas ficam “sem graça” na comparação com a Tesla, por exemplo. Incomoda não ser a empresa mais sexy da bolsa?

É difícil ser sexy quando não se é novo. O mundo e o mercado acionário têm que ser compostos de ações que trazem retorno no curto e outras no longo prazo. O que anima é ser a empresa mais sexy dentro do mercado de alimentos. Ainda não somos, mas tempo e resultados constroem e a credibilidade. Estamos trabalhando. Não é de um dia para o outro. Estamos aqui para o longo prazo. Ter o 3G como um dos principais acionistas é um diferencial porque eles estão para o longo prazo. A empresa pensa no longo prazo e eu estou aqui para o longo prazo. Se você olha muito para o valor da ação no dia seguinte, perde o rumo.

O seu próximo passo dentro do 3G está no mercado de alimentos ou no de cerveja, talvez?

Meu próximo passo é ter crescimento sustentável dentro da companhia.

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Ketchup Heinz: produto icônico da companhia, que data do século 19, mas que chegou ao Brasil há apenas dez anos (Arnd Wiegmann/File Photo/Reuters)

 

 

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