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Entenda como a ciência pode definir o futuro dos uísques

Algumas empresas estão prometendo "hackear" a bebida no processo de destilação. Descubra como isso é feito e o porquê divide opiniões

Uísque: em resumo, "hackear" a bebida significa fazê-la envelhecer anos em dias.  (Natasha Breen/Getty Images)

Uísque: em resumo, "hackear" a bebida significa fazê-la envelhecer anos em dias. (Natasha Breen/Getty Images)

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Matheus Doliveira

Publicado em 4 de março de 2021 às 06h59.

Última atualização em 4 de março de 2021 às 10h45.

Há uma velha piada sobre negócios que é muito contada no Vale do Napa: como fazer uma pequena fortuna com vinho? Comece com uma grande fortuna.

O mesmo vale para o uísque. Equipamentos, barris e espaço suficiente para tudo isso podem custar milhões, dinheiro que você só vai recuperar anos depois, quando a bebida amadurecer. Nesse período de envelhecimento, há uma perda de 20 por cento ou mais do produto para a evaporação – o que os destiladores chamam de "a parte do anjo".

O uísque, portanto, está pronto para ser hackeado – pelo menos de acordo com Stuart Aaron e Martin Janousek. Sua empresa, a Bespoken Spirits, em Menlo Park, na Califórnia, afirma conseguir fazer uísque em apenas alguns dias, usando calor e pressão para forçar o álcool para dentro e para fora de pequenos pedaços de madeira que dão ao destilado seu sabor e sua cor característicos. "Com a ciência material moderna e a análise de dados, podemos mudar essa indústria antiquada", disse Aaron.

A Bespoken, cujas primeiras garrafas apareceram nas lojas no fim do ano passado, chega a um campo disputado. Mais de dez empresas afirmam que podem acelerar, ou mesmo contornar, o processo de envelhecimento. Muitas estão chamando a atenção dos investidores: a Endless West, em San Francisco, recebeu quase US$ 13 milhões em financiamento desde que foi fundada em 2015, enquanto um dos apoiadores da Bespoken é Derek Jeter, ex-jogador do New York Yankees.

Alguns desses uísques são melhores que outros. Embora vários tenham ganhado prêmios em competições de destilados, até agora os críticos basicamente os rejeitaram. Mas, à medida que as vendas de uísque crescem em percentuais de dois dígitos anualmente, e conforme os consumidores – e os investidores – buscam mais do que as destilarias estabelecidas podem fornecer, empresas como a Bespoken podem ter vindo para ficar.

A questão é: onde o uísque feito de modo rápido se encaixa em um negócio baseado em tradição e prestígio?

Desde que os destiladores colocaram o primeiro destilado no primeiro barril para amadurecer, as pessoas tentam acelerar esse processo. Tradicionalmente, o envelhecimento é permitir que a alteração sazonal da temperatura faça o uísque penetrar e sair da madeira do barril, garantindo sabor e cor nesse processo, que pode durar de alguns anos a várias décadas.

Antes que a Lei de Alimentos e Drogas Puros de 1906 impusesse regulamentos sobre como o uísque deveria ser feito, "acelerar" muitas vezes significava dosar álcool com caramelo e fuligem, ou coisa pior, para fazê-lo parecer velho. Mas outras técnicas que foram desenvolvidas no fim do século XIX – como armazéns aquecidos que podiam replicar as quatro estações várias vezes por ano – foram aceitas e até mesmo se tornaram uma prática comum entre destilarias estabelecidas.

Na última década, alguns destiladores passaram a usar barris muito menores que o tamanho padrão, aumentando a relação superfície-volume e, portanto, a velocidade do ciclo em que o uísque entra e sai da madeira.

A tecnologia da Bespoken é, de certa forma, o próximo passo nessa evolução. Em vez de um barril, a empresa adiciona milhares de pedaços de madeira de tamanho mínimo, chamados de "microstaves", ao uísque não envelhecido, ou parcialmente envelhecido, em um tanque de aço. Ao aumentar e diminuir rapidamente a pressão e o calor interno, o dispositivo, que Aaron e Janousek chamam de "ativador", força o uísque a entrar e a sair da madeira várias vezes por dia.

O processo oferece outra vantagem além da velocidade. Embora um barril seja, em geral, feito inteiramente do mesmo tipo de madeira, existem centenas de tipos de microstaves, variando entre espécies de árvores e tratamentos, que permitem que a Bespoken crie uma matriz quase ilimitada de estilos e sabores: a empresa afirma poder trabalhar com 17 bilhões de combinações possíveis. "As destilarias tradicionais se destacam ao produzir sempre a mesma coisa. Nós já produzimos milhares", afirmou Aaron.

Outra destilaria, a Lost Spirits, com sede em Los Angeles, adota uma abordagem semelhante, colocando uísque e madeira no que seu fundador, Bryan Davis, chama de reator. Uma diferença fundamental é a luz: além de controlar o calor, ele bombardeia a madeira com luz intensa, algo que, segundo ele, pode alterar sua estrutura molecular, ajudando a criar os sabores complexos associados aos destilados bem amadurecidos.

Para Davis, a vontade de manipular o envelhecimento tem mais a ver com assumir o controle de um processo que deve muito ao acaso e à natureza, e não apenas disponibilizar um produto no mercado o mais rápido possível. "Trata-se de garantir a capacidade de manipular esses componentes de sabor. Eu queria ter o controle para criar algo interessante, como a mídia de um artista."

Outras empresas, incluindo a Cleveland Whiskey e a Green River Spirits, usam variações das tecnologias empregadas pela Bespoken e pela Lost Spirits. A Endless West faz algo totalmente diferente. Analisando os componentes moleculares de um uísque e essencialmente infundindo-os em uma base de álcool, ela diz ser capaz de usar a engenharia reversa não apenas com o bourbon ou o uísque, mas com qualquer bebida, até mesmo o vinho.

A empresa afirma que pode criar o equivalente a um destilado de cinco anos, ou mais, da noite para o dia, abrindo a possibilidade de imitar, digamos, o single malt Balvenie, de 30 anos, por uma fração do preço da bebida no varejo, que é de US$ 1.300. Garrafas de seu uísque principal, o Glifo, custam cerca de US$ 40 cada, enquanto o bourbon da Bespoken é vendido por cerca de US$ 35.

"Comparo o trabalho que fazemos com a digitalização da música, que ampliou a distribuição da arte. Queremos ver um mundo em que qualidade e disponibilidade não estão em conflito", disse Alec Lee, cofundador da Endless West, reproduzindo um sentimento comum dessas empresas.

Essas três empresas fazem destilados competentes e agradáveis, embora cada uma tenha suas limitações.

Os uísques da Bespoken não são arredondados como os convencionalmente amadurecidos; há um toque inicial de baunilha, caramelo e especiarias de madeira, mas que não persistem. O mesmo vale para o rum da Lost Spirits, embora este seja muito menos refinado: com 61 por cento de álcool, está cheio de frutas escuras e couro, uma bebida forte e enxuta, mas que precisa de profundidade.

Especialistas em destilados tendem a concordar que uísques como esses ainda estão longe de poder competir com os rótulos tradicionais.

"Pela minha análise, mesmo que alguém consiga criar um bom produto, não há o mesmo tipo de complexidade que você percebe em, digamos, um bourbon envelhecido", explicou Nancy Fraley, blender freelancer veterana que dá consultoria a dezenas de empresas de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos e na Europa.

Pode ser que, como os programas de xadrez de computador na década de 1970, a tecnologia seja impressionante e que ainda esteja em seus primórdios, e que seja apenas uma questão de tempo até vermos um uísque da Endless West bater uma garrafa do Macallan em um teste de gosto, da mesma forma que o computador Deep Blue superou Garry Kasparov no xadrez em 1997. Mas talvez a ideia não seja superar o Macallan ou um de seus equivalentes.

O mercado de bebidas alcoólicas diferenciadas é enorme e crescente, mas, em matéria de volume total, o dinheiro real ainda vem dos destilados mais baratos, bem como dos uísques aromatizados e dos coquetéis em lata "prontos para beber" – produtos em que as nuances realmente não importam.

Nesse sentido, um uísque como o da Bespoken não precisa ter o sabor do melhor bourbon para fazer sucesso; ele só precisa ser melhor do que o pior, a um preço competitivo.

E depois há o mercado internacional. Mesmo com a velocidade com que as vendas de bebidas alcoólicas vêm aumentando nos Estados Unidos – de acordo com a Nielsen, cresceram 25,1 por cento em 2020 em relação ao ano anterior –, elas não são nada se comparadas ao potencial que algumas empresas americanas e europeias veem em lugares como a China e a Índia, onde as barreiras comerciais são muitas vezes tudo o que há entre elas e bilhões de consumidores não familiarizados com os destilados americanos, mas ansiosos para experimentá-los. Se a Índia derrubasse suas barreiras amanhã, uma empresa como a Bespoken ou a Endless West, que não tem a necessidade de envelhecer suas bebidas, seria capaz de fornecer produtos muito mais rapidamente do que uma destilaria tradicional.

Pode ser por isso que várias grandes destiladoras também têm se dedicado silenciosamente ao uísque de envelhecimento rápido. A Edrington, empresa britânica por trás de marcas escocesas de luxo como Macallan e Highland Park, produz o Relativity, uísque americano feito com um processo semelhante ao da Bespoken.

Também é possível que, à medida que essas empresas se desenvolvam, seus produtos acabem sendo algo totalmente diferente, e não uma versão de ficção científica do uísque convencional.

"Pelo que vi e provei, não considero uma réplica de um uísque de 20 anos. Isso significa que é ruim? Não. Tem um lugar no mercado? Sim. Contanto que fique claro que não é a mesma coisa", concluiu Fraley.

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