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Em novo livro, Ferran Adrià atribui um traço raro ao homem do Paleolítico: gosto

O volume de 592 páginas, colaboração entre Adrià e uma equipe de especialistas, apresenta uma linha do tempo evolutiva sobre por que quem trabalha nesta indústria faz o que faz

Ferran Adrià: "'Criatividade'" era um termo usado por artistas e músicos, nunca por chefs de cozinha" (Francesc Guillaumet/Divulgação)

Ferran Adrià: "'Criatividade'" era um termo usado por artistas e músicos, nunca por chefs de cozinha" (Francesc Guillaumet/Divulgação)

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Julia Storch

Publicado em 13 de março de 2021 às 07h55.

Ferran Adrià, chef do revolucionário restaurante el Bulli, faz uma concessão na introdução de seu The Origins of Cooking: Paleolithic and Neolithic Cooking (“As Origens da Gastronomia: Culinária Paleolítica e Neolítica”, em tradução livre do inglês). “Este livro é um pouco pesado, para ser sincero”, escreve ele.

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É um alerta que faz sentido até mesmo para aqueles que sabem o que é ser capturado por uma das extensas discussões pós-prandiais de Adrià sobre a refeição fantasmagórica que acabaram de comer. Antes de fechar o templo culinário na costa catalã em 2011, eu tive a tremenda sorte de ser sequestrado em cinco ou seis oportunidades, e feito alegremente de refém das palestras de uma hora ou mais de Adrià, após alguns convidados e muitos de sua equipe terem ido embora.

Origins é Adrià de um jeito diferente, mais sério. É o volume que ancora uma octologia sistemática planejada para contar a história da culinária ocidental sensível não só à parte de Adrià nesta história, mas também ao papel de qualquer um que já trabalhou em um restaurante. O volume de 592 páginas, colaboração entre Adrià e uma equipe de especialistas, apresenta uma linha do tempo evolutiva sobre por que quem trabalha nesta indústria – seja chef, empregado da cozinha, ajudante de garçom ou maitre – faz o que faz. E começa falando do período que antecede até mesmo o momento em que o primeiro fogo foi aceso.

Uma seção chamada “Paleolítico sem Fogo” apresenta um menu de iguarias gastronômicas do período paleolítico. (Phaidon/Reprodução)

Este não é um livro de receitas do homem das cavernas. É Adrià fazendo conexões interdisciplinares entre os chefs de hoje e aqueles de 2,5 milhões a 3,5 mil anos a.C., apontando elos com o passado para colocar o presente em contexto. Com isso, Origins pode ser sóbrio e árido em alguns momentos. Porém, como todo bom anfitrião, Adrià é um mestre da atmosfera condutiva.

Uma seção chamada “Paleolítico sem Fogo” apresenta um menu de iguarias gastronômicas do período, incluindo medula de antílope, caqui fermentado, cérebro fresco de cavalo, bochecha e língua de mamute, carne de crocodilo triturada e, para provar que algumas coisas nunca mudam no mundo da culinária de alto padrão, ostras.

O livro é todo cravejado de listas estilosas, mapas, fotografias e tabelas cronológicas. Há um diagrama de esqueleto de cervo que mostra a habilidade carniceira – usando somente ferramentas de pedra – do Homo erectus. O texto que acompanha a ilustração deixa claro que os humanos arcaicos vinham fazendo filé de carcaça de modo sistemático, além de extrair a medula dos ossos.

Origins insiste em dizer, contudo, que, em termos de culinária, o cru e o cozido são uma falsa dicotomia. Adrià diz que a equipe do El Bulli bolou um terceiro termo: o “unraw” (“cruzido”, em tradução livre do inglês) – comida que foi transformada fisicamente sem calor. O caqui fermentado no menu irônico, por exemplo, não seria envelhecido em um barril mas simplesmente um fruto muito maduro ou podre que os hominídeos aprenderam a colher em função de seu teor alcoólico.

Todavia, o fogo de fato marcou uma mudança de paradigma no modo como os humanos comem. Dominá-lo exigiu experiência e paciência e talvez dê uma pista da evolução da estética gastronômica. Uma série de fotos ilustra o processo trabalhoso que teria sido ferver a água quando não havia cerâmica: esquentar pedras até ficarem vermelhas de calor e então jogá-las em troncos ocos de árvores cheios de água. Pra que todo esse trabalho? Homo sapiens e neandertais aparentemente ferviam ossos para tirar toda a gordura da carcaça. “Um pouco de gordura fundida: o aditivo alimentar pré-histórico”, declara o livro. Sem novas sob o sol.

Na seção “Paleolítico com Fogo”, o livro imagina uma comunidade de Homo sapiens se reunindo em torno de uma lareira a céu aberto saboreando um animal cozido. A descrição da experiência soa como se fosse um garçom apresentando um prato aos convidados de qualquer restaurante dos nossos tempos: “A textura do produto era completamente diferente, ficando mais crocante, mais tenra e mais saborosa; o cheiro do prato se intensificava com a gordura quente e o processo de tostagem… a cor mudava; e a sensação agradável de calor surgia quando a carne era tocada, mordida e saboreada na boca”.

Não se empolgue muito imaginando a existência de um Noma ou French Laundry da Idade da Pedra. Para acabar com qualquer fantasia deste tipo que você esteja cultivando, o livro cita empratar e servir, “dois processos básicos de restaurantes finos”. Para o foodie paleolítico, a conclusão de Adrià é clara, ainda que desbocada: “Não havia distinção entre empratar/servir e ingerir”.

Origins mergulha em material ainda mais hermético, como é o caso da reação de Maillard, que acontece quando calor é aplicado e “determinados componentes nos açúcares redutores interagem com aminoácidos e proteínas para formar um composto de ‘aminoaçúcar’ que... desencadeia uma série de reações”. Ou o que você e eu chamamos de dourar e assar.

Em outro lugar, as quatro etapas da caramelização são enumeradas, e o leitor é alertado para o fato de que “se mais calor for aplicado, obtém-se pirólise plena, transformando o produto em um composto negro amargo”. A qualidade de vida pode ter mudado desde a época do Paleolítico, mas as propriedades químicas da comida não.

Capa do livro, editado pela Phaidon. (Phaidon)

Partes dos escritos podem ser de fato pesadas. Origins usa 138 páginas para apresentar uma metodologia rígida que Adrià chama de “Sapiens” – latim para “aquele que sabe”. É ela quem dá forma a este livro e aos sete seguintes, que incluirão explorações da comida da antiga Mesopotâmia, Egito, Grécia e Roma, além de uma história da primeira era de ouro da gastronomia francesa nos séculos 17 e 18.

O efeito das ilustrações coloridas e do texto por vezes esotérico é o mesmo de estudar a Cabala – gnóstico, gnômico, arcano, mas no fim das contas gratificante. A filosofia sofisticada do livro sustenta cozinhar e comer como definições do que é ser humano. E é também uma visão de mundo generosa. Adrià e cia. tratam o geralmente caricato Homo neanderthalensis como equivalente do Homo sapiens em termos de abordagem da culinária.

A cozinha da Idade da Pedra está bastante distante daquilo pelo qual Adrià se tornou célebre – que ele chama de culinária “tecnoemocional” e que o resto do mundo conhece pelo nome cozinha molecular. Mas quem é que não prestaria atenção a um homem que transformou a arte de cozinhar e destronou os franceses como imperadores da alta gastronomia? Adrià fez o mundo falar em haute cuisine como uma ideia possível de ser expressa em qualquer idioma, e agora está tentando cruzar outra fronteira. Ao nos trazer de volta à descoberta primal do prazer dos sabores, texturas e temperaturas, ele está decidido a conquistar o tempo.

Tradução por Fabrício Calado Moreira

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