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Cat Person: um conto para nós

Como um conto publicado na revista New Yorker abriu uma discussão sobre desejo e consentimento na hora do sexo e o caráter masculino

Nova York: julgamento está previsto para começar no dia 7 de outubro de 2019 (Mario Tama/Getty Images)

Nova York: julgamento está previsto para começar no dia 7 de outubro de 2019 (Mario Tama/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 16 de dezembro de 2017 às 13h01.

Última atualização em 16 de dezembro de 2017 às 13h01.

“Cat Person”, conto publicado na revista New Yorker em 11/12/2017

Autor: Kristen Roupenian

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“Cat Person” é um conto publicado na revista New Yorker em dezembro, que imediatamente rodou o mundo. É raro um conto ter esse tipo de repercussão; exige uma fina harmonia entre captar um tema do momento e saber, com ele, tecer uma história que ascenda a um patamar mais elevado do que a simples tomada de partido.

O tema do conto, como não poderia deixar de ser nesses tempos em que a sociedade e a cultura americanas vêm abaixo com histórias de abusos, assédios e flertes, é a zona cinzenta que paira ao redor de desejo e consentimento na hora do sexo.

Margot, uma menina de 20 anos, conhece Robert, um homem jovem (mais velho que ela), e começam um relacionamento inicialmente via conversas no celular, basicamente trocando piadinhas e flertes. A coisa evolui e depois esfria, mas os dois ainda conseguem marcar de sair. Acompanhamos sempre o ponto de vista de Margot, sua excitação, ansiedade, inseguranças, medos, e por fim nojo, na história que leva das primeiras trocas de mensagem até a noite em que transam e ao inevitável afastamento que se seguiu.

O bom conto é uma história com duas camadas, na qual há coisas rolando por baixo da narrativa explícita. Na narrativa, temos um caso de sexo contemporâneo (não dá para falar de “amor”). Duas pessoas, com suas falhas e inseguranças, inicialmente parecem se dar super bem, depois percebem que a convivência não é tão fluida, mesmo assim transam, e depois, por iniciativa de Margot, cortam relações. Mas a separação nunca é fácil, e nesse caso especialmente para Robert, que chega a ir atrás dela no bar de universitários que ela frequentava. Evitado ostensivamente pela garota, se enfurece, e começa a mandar mensagens. Ciúmes e paranoia parecem tomar conta, e aquele rapaz que parecia tão charmoso no início fecha o conto mandando apenas a mensagem “Whore.” (“puta”).

Todo mundo, de ambos os sexos, sente ciúmes, mesmo com pessoas de quem não somos íntimos. Mas essa mostra de um sentimento menos nobre por baixo de uma personalidade aparentemente carinhosa serve como pista para indicar que as coisas ali não eram exatamente como pareciam. Robert não era só um rapaz em busca de felicidade e amor, mas talvez (a certeza nunca se comprova) um manipulador bastante inescrupuloso.

Os detalhes permeiam a história do casal: falas condescendentes ou depreciativas para com Margot (o fato de ela morar numa casa estudantil, seu curso de cinema), sua política pessoal de tempo para responder as mensagens dela, o colocá-la sempre na posição de ter que provar seu mérito para ele, seus comentários ao vivo (uma crítica à roupa dela) que buscam deixá-la mais insegura. Por fim, há um lado ainda mais sombrio: a possibilidade de que ele tenha mentido sobre coisas importantes de sua vida, como sua paixão por seus dois supostos gatos (na casa dele, ela não vê sombra de gato), a omissão de sua verdadeira idade.

A relação sexual que finalmente acontece entre os dois é um suplício para Margot, que não se sentiu à vontade para negar (afinal, já tinha entrado por livre e espontânea vontade no quarto dele), mas ao mesmo tempo torcia para acabar logo. Um mal-entendido entre duas almas perdidas guiadas pelo desejo vão de se encontrar, ou o resultado de um manipulador usando uma pessoa mais jovem de forma desonesta? Não é fácil determinar. Talvez nem seja possível. Robert era ou não era um “cat person”?

Ilusões fazem parte de qualquer relacionamento humano. Há uma linha contínua que vai desde o equívoco não intencional, passa pela tentativa de criar uma imagem que não corresponde ao real (uma versão “melhorada” de nós mesmos) e chega até a mentira pura e simples. Todo mundo, em algum momento, já o fez. Se o conto tem uma falha é não entrar a fundo na própria Margot, revelando um pouco de seus autoenganos e das ilusões que a mulher também sustenta no jogo da sedução.

Seja como for, ela era a mais jovem e a mais vulnerável, inclusive fisicamente. Por vezes, um medo meio irracional de que o rapaz ao seu lado seja um maníaco que vai assassiná-la toma conta dela. Não era.

Era só um homem normal, ou talvez um predador sexual. Claro que, para grande parte do chamado movimento feminista de hoje (um dos responsáveis pelo sucesso do conto), não existe diferença entre as duas coisas. O fato de muitos leitores homens não verem, à primeira vista, nada de estranho na conduta de Robert, serviu como mais uma confirmação dessa ideia. Acima de tudo, penso, há uma dificuldade de empatia entre os dois sexos, que em parte é inevitável (pois a experiência de homens e mulheres é bastante diferente – se por biologia ou cultura, não importa), e sempre colocará em andamento os dramas amorosos que perfazem tanto de nossa literatura.

Se todo mundo, em alguma medida, mente, o que diferencia o monstro do homem normal? Creio que a resposta não esteja só no grau da mentira (sabemos que pessoas que gostam da gente, às vezes, por medo ou insegurança, mentem mesmo). A resposta está, sim, num outro lado: existe ali algum afeto verdadeiro? Margot, ao se aproximar de Robert, estava vivendo um processo de descoberta. Será que ele sentia algo nas mesmas linhas? Ou será que, ao invés disso, tinha era desprezo pela menina que queria dominar?

Entre os extremos da honestidade radical ininterrupta (e suicida) e a manipulação psicopática, há a zona cinzenta que todos habitamos, tentando o equilíbrio entre sucesso (seja no amor, no sexo, no trabalho, etc.) e integridade. Também ficamos no meio do caminho entre gostar e usar. Queremos encontrar alguém que nos complete, mas somos capazes de machucar uns aos outros de formas de que nem ficamos sabendo. Suspeitamos de quem quer o nosso bem e confiamos em monstros amorais. É parte da vida e, por saber explorar a complexidade do sexo casual num mundo que está cada vez mais em dúvida, “Cat Person” é um conto do nossos tempos que sem dúvida merece ser lido.

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